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Terça 27 de Agosto

de Christian Bobin

 

Nada, além da chuva – mas a chuva, não é “nada”, afasta o céu como se empurra um móvel para fazer limpezas, ela canta ao limpar as janelas, os rostos e os pensamentos, prepara a vinda de alguém que chegará logo a seguir, alguém que gosta do que brilha e cheira a novo – uma fada ou o Menino Jesus.

 

Imagem:  Andrei Tarkovski

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Dulce Maria Loynaz

Falou a nuvem e disse:

– Sou e não sou. Estou e já deixei de estar. Nada é menos que eu, que não sou nada.

Falou a estrela e disse:

– Tão-pouco eu sou eu. Levo uma morte de milhões de anos quando os sábios me dão nomes belos.

Falou o sonho e disse:

– Eu estou para lá da morte, pois não nasci ainda. E embora por nascer possa ficar, sou já mais forte que a vida.

Então o homem que escutava sentou-se em lágrimas desoladas. Tudo quanto havia julgado seu não existia; o seu reino era um reino de fantasmas; o seu coração, um coração sem eco.

E, não obstante, ele pudera viver e morrer dia após dia, por coisas que não morriam nem viviam.

 

Imagem: Paulo Nozolino

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À excepção do corpo

por Mary Oliver

 

À excepção do corpo

de alguém que amas,

incluindo todas as suas expressões

em privado e em público,

 

as árvores, penso ,

são as mais belas

formas sobre a Terra.

 

Ainda que, admitamos,

se isto fosse um concurso,

as árvores acabariam num

muitíssimo distante segundo lugar.

 

Imagem: Alfred Stieglitz

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La petite promenade du poète

de Dino Campana

 

Ando pelas estradas

Obscuras estreitas e misteriosas:

Vejo através das vidraças

Mostrarem-se Gemnas e Rosas.

Há quem desça tacteando

As escadas misteriosas:

Por detrás das vidraças reluzentes

Estão as comadres a coscuvilhar.

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A estradinha é solitária:

Nem um cão: são escassas as estrelas

Na noite sobre os telhados:

E a noite parece-me bela.

E caminho, um pobre coitado

Na noite fantasiosa,

Ainda que na boca sinta

A saliva desgostosa. Ando pela pestilência

Ando pela pestilência e pelas ruas

E ando e continuo a andar,

Até onde as casas começam a escassear.

Encontro a relva: ali me estendo

Enroscado como um cão:

À distância um bêbado

canta os seus amores às persianas.

 

Imagem: Paul Klee

 

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Um quarto num hotel

por Mahmoud Darwich

A paz seja como o amor quando chega, quando morre e quando muda de amantes nos hotéis. Perde ele alguma coisa com isso? Beberemos o café vespertino no jardim. Contaremos histórias do exílio a noite. Depois iremos para um quarto — dois estranhos em busca de uma noite de compaixão, etecetera, etecetera.

 

Deixaremos algumas palavras nos nossos dois assentos, esqueceremos os nossos cigarros, outros virão para prolongar a nossa noite e o nosso fumo. Esqueceremos um pouco de sono nas nossas almofadas, outros virão para descansar no nosso sono, etecetera, etecetera. E ainda assim confiamos os nossos segredos aos hotéis? Outros virão para prosseguir o nosso grito na escuridão que nos juntou os corpos, etecetera, etecetera. Somos apenas dois entre os muitos que dormem numa cama pública, que não fazem mais do que repetir as palavras que disseram ainda há pouco outros dois de passagem pelo amor. E a despedida chegará depressa. Ter-se-á este fugaz encontro destinado apenas a fazer esquecer quem nos amou noutros hotéis? Não disseste tu estas palavras cruéis a outro? Não disse eu estas palavras cruéis a outra num outro hotel?, ou tê-las-ei dito aqui, nesta mesma cama? Daremos os mesmos passos, para que outros venham e deem os mesmos passos, etecetera, etecetera.

 

Imagem: Edward Hopper