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Um Armário Cheio de Sombra

“As mãos da minha mãe eram grandes. Punha-as na minha testa querendo medir uma febre que talvez não existisse e acostumei-me a sentir juntos o cheiro da lixívia e a ternura. As mãos foram grandes em anos longínquos; não mais tarde, quando descansaram frias sobre a manta vermelha que envolvia as suas pernas. As veias, grossas outrora, tinham desaparecido numa brancura até então inexistente.
Também era difícil reconhecer os seus olhos, que haviam sido ágeis, ainda que parecessem sempre cristalizados no cansaço. Tornaram-se maiores (a sua íris tinha-se dilatado ou as suas pálpebras tinham recuado) e não havia neles escuridão nem sinais de pensamento. Atrás da córnea, inexplicavelmente azul ou sem cor, não sei bem, permanecia um olhar interrogante e quieto. Havia desaparecido a precisão da pupila, mas não o olhar. A transformação das suas mãos e dos seus olhos durou cinco anos, talvez mais. Morreu suavemente, deixando cair com cuidado a cabeça sobre a clavícula esquerda. Estávamos na galeria e sol retirava-se já do frontão branco das casas vizinhas. Eu estava a dar-lhe de comer”

Antonio Gamoneda, em “Um Armário Cheio de Sombra”
Pintura: A Woman Sewing in an Interior, de Vilhelm Hammershoi