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Um quarto num hotel

por Mahmoud Darwich

A paz seja como o amor quando chega, quando morre e quando muda de amantes nos hotéis. Perde ele alguma coisa com isso? Beberemos o café vespertino no jardim. Contaremos histórias do exílio a noite. Depois iremos para um quarto — dois estranhos em busca de uma noite de compaixão, etecetera, etecetera.

 

Deixaremos algumas palavras nos nossos dois assentos, esqueceremos os nossos cigarros, outros virão para prolongar a nossa noite e o nosso fumo. Esqueceremos um pouco de sono nas nossas almofadas, outros virão para descansar no nosso sono, etecetera, etecetera. E ainda assim confiamos os nossos segredos aos hotéis? Outros virão para prosseguir o nosso grito na escuridão que nos juntou os corpos, etecetera, etecetera. Somos apenas dois entre os muitos que dormem numa cama pública, que não fazem mais do que repetir as palavras que disseram ainda há pouco outros dois de passagem pelo amor. E a despedida chegará depressa. Ter-se-á este fugaz encontro destinado apenas a fazer esquecer quem nos amou noutros hotéis? Não disseste tu estas palavras cruéis a outro? Não disse eu estas palavras cruéis a outra num outro hotel?, ou tê-las-ei dito aqui, nesta mesma cama? Daremos os mesmos passos, para que outros venham e deem os mesmos passos, etecetera, etecetera.

 

Imagem: Edward Hopper

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Sono

de Gennady Aygi

 

Consideremos alguém que não há muito nos desagradasse, que porventura até criasse em nós sentimentos negativos, consideremos essa pessoa enquanto dorme.

Por alguma razão, sentiremos pena dela. Pena das suas mangas que estão à vista, das suas mãos. Pena das suas roupas, por alguma razão. (Desperto, a sua roupa lembra uma armadura “mundana”, “institucional”, “familiar”.)

Ele é todo confiança em Algo, em Algum. E naturalmente em Alguém que é incomensuravelmente maior do que nós, que o observamos.

Mas mesmo então, há também a confiança em nós.

 

Imagem: fotografia de Alfred Stiegltiz

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Uma única vez

de Denise Levertov

Tudo aquilo que, porque tinha sido
chama e canto e outorgada
alegria, pensámos fazer, ser, revisitar,
revela ter sido o que fora
nessa única vez; não se abriu
a cada iniciação
uma série, um crescendo: o maravilhoso
aconteceu nas nossas vidas, as nossas histórias
não são pardas dessa ausência: mas não
esperem agora voltar. O que mais
houver será
único como essas coisas únicas. Tentem
aceitar a próxima
cancão em seu corpóreo halo de chamas tão inteiramente
presente, como agora ou nunca.

Imagem: Denise Levertov, fotógrafo desconhecido

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manhã

de Robert Lax

 

No princípio (no princípio do tempo pelo

menos) havia os compassos: rodopiando no

vazio os seus pés traçavam princípios e fins,

princípios e fim numa só linha. E a sabedoria dançava

em círculos, pois assim era seu reino: o sol

girava, mundos rodopiavam, as estacões formavam-se, e

todas as coisas ganhavam a sua forma: mas no princípio,

princípio e fim eram um.

 

E no princípio era o amor. O amor fez uma esfera:

nela todas as coisas cresceram; a esfera conteve então

princípios e fins, princípio e fim. O amor

tinha um compasso cuja dança rodopiante traçou no

vazio uma esfera de amor: no seu centro

nasceu uma fonte.

 

Imagem: Capa da primeira edição de “Circus of the Sun”, de Robert Lax

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Do Amor

de Mary Oliver

Estive apaixonada por mais duma vez,
graças a Deus. Umas vezes foi duradouro,
quer fosse correspondido ou não. Outras
não foi mais do que efémero, porventura durou apenas
uma tarde, mas nem por isso foi menos real.
Perduram na minha mente, estas pessoas belas,
ou em todo caso belas para mim, das quais
há tantas. Tu, e tu, e tu,
que eu tive a sorte de conhecer, ou talvez
tenha deixado escapar. Amor, amor, amor, era o
centro da minha vida, e daí, claro, provém
a palavra para coração. Oh, e já mencionei
que algumas delas eram homens e algumas mulheres,
e algumas — agora carrega a minha revelação contigo —
eram árvores? Ou lugares. Ou música que voava sobre
os nomes dos seus criadores. Ou nuvens, ou o Sol
que foi o primeiro, e o melhor, sem dúvida
o mais leal, que me olhava tão fielmente nos
olhos, todas as manhãs. Por isso imagino
tamanho amor do mundo — o seu fervor, o seu brilho, a sua
inocência e avidez de dar de si mesmo — imagino
que foi assim que começou.

Imagem: Mary Oliver (nascida em 1935, à direita) com Molly Malone Cook (1925–2005) na casa do casal em Provincetown, Massachusetts

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Regresso

De Dino Campana

 

A água o vento

A sanidade das primeiras coisas –

O trabalho humano sobre o elemento

Líquido – a natureza que conduz

Estratos sobre estratos de rocha – o vento

Que brinca no vale – e a sombra do vento

A nuvem – o aviso distante

Do rio no vale –

E as ruínas do contraforte – o deslizamento

A vitória do elemento  – o vento

Que graceja no vale.

Sobre o longuíssimo vale que forma uma estrada

A casinha de pedra sobre o verde extenuante:

A branca imagem do elemento.

 

imagem:  Pintura de Paul Cezanne

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Edmond Jabés

“A infância é uma terra banhada por água em que flutuam barquinhos de papel. Às vezes os barquinhos transformam-se em escorpiões; então a vida morre por envenenamento a todas as horas.

O veneno está em cada corola, como a terra está no Sol. De noite, a terra é entregue a si própria, mas os homens dormem felizes. No sono, são invulneráveis.

O veneno é o sonho. “

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Dulce Maria Loynaz

Eu sou a terra de aluvião que a água vai arrastando. Não tenho tempo para formar uma árvore, para adoçar um fruto, para lograr uma flor.

Não aqueci duas vezes a mesma Primavera, embora todas as Primaveras me reconheçam ao passar.

As chuvas  deslocam-me sem me desintegrar, o vento empurra-me sem romper o meu contorno, a minha identidade; continuo a ser eu mesma, mas perdendo-me constantemente do meu centro. Ou do que julgava ser o meu centro… Ou do que nunca será o meu centro…

 

Imagem: Alfred Stieglitz