Publicado em

O estranho descobre-se na estranha

por Mahmoud Darwich

 

Somos dois convertidos num só.

Não temos nome, estranha mulher,

quando o estranho se descobre na estranha.

O que resta do jardim atrás de nós é o poder da sombra.

Mostra o que te aprouver da terra da tua noite, e esconde o que te aprouver.

Vimos apressadamente do ocaso simultâneo de dois lugares.

Juntos procurámos as nossas moradas.

Segue a tua sombra, a leste do Cântico dos Cânticos,

reunindo cortiçóis em bando.

Descobrirás uma estrela que reside na própria morte.

Escala uma montanha deserta,

descobrirás o movimento circular que une o meu ontem ao meu amanhã.

Descobrirás onde estávamos e onde, juntos, estaremos.

Somos dois convertidos num só, estranho homem.

Vai para o mar a oeste do teu livro, e mergulha com a leveza

de quem é levado por duas ondas à nascença,

descobrirás um aglomerado de algas e um verde céu de água.

Mergulha com a leveza de quem é nada em nada.

E descobrir-nos-ás juntos.

 

Imagem: Egon Schiele

Publicado em

Um quarto num hotel

por Mahmoud Darwich

A paz seja como o amor quando chega, quando morre e quando muda de amantes nos hotéis. Perde ele alguma coisa com isso? Beberemos o café vespertino no jardim. Contaremos histórias do exílio a noite. Depois iremos para um quarto — dois estranhos em busca de uma noite de compaixão, etecetera, etecetera.

 

Deixaremos algumas palavras nos nossos dois assentos, esqueceremos os nossos cigarros, outros virão para prolongar a nossa noite e o nosso fumo. Esqueceremos um pouco de sono nas nossas almofadas, outros virão para descansar no nosso sono, etecetera, etecetera. E ainda assim confiamos os nossos segredos aos hotéis? Outros virão para prosseguir o nosso grito na escuridão que nos juntou os corpos, etecetera, etecetera. Somos apenas dois entre os muitos que dormem numa cama pública, que não fazem mais do que repetir as palavras que disseram ainda há pouco outros dois de passagem pelo amor. E a despedida chegará depressa. Ter-se-á este fugaz encontro destinado apenas a fazer esquecer quem nos amou noutros hotéis? Não disseste tu estas palavras cruéis a outro? Não disse eu estas palavras cruéis a outra num outro hotel?, ou tê-las-ei dito aqui, nesta mesma cama? Daremos os mesmos passos, para que outros venham e deem os mesmos passos, etecetera, etecetera.

 

Imagem: Edward Hopper

Publicado em

Mural, Mahmoud Darwich

Mural, escrito por Mahmoud Darwich em 2000, e publicado em Portugal pela primeira vez pela editora Flâneur este ano, é um poema lírico e épico, uma meditação apaixonada sobre toda a sua vida e o seu próprio confronto com a mortalidade.
Assimilando séculos de poesia árabe e aplicando a sensibilidade moderna à riqueza do seu passado literário, Darwich submeteu a sua arte à experiência do exílio e à sua própria exigência de que a obra se mantivesse fiel a si mesma, independentemente da crítica ou da aceitação pública.
Talvez nenhum poeta no nosso tempo tenha suportado este peso: ser a voz estimada e venerada de um povo, mantendo-se fiel à própria poesia, por mais hermética e interior que fosse; e ser ao mesmo tempo culturalmente múltiplo e espiritualmente singular.
Darwich é a voz da diáspora palestiniana e a voz da alma fragmentada.
O longo poema Mural é um poema central na sua obra. Em 1999, após sobreviver a uma operação ao coração, Darwish entendeu que Mural seria a sua última oportunidade de escrita. O poema é uma canção de louvor que afirma a vida e humanidade não só dos palestinianos marginalizados, mas também do indivíduo nesta terra, e do próprio Mahmoud Darwich.

Quero viver. Tenho trabalho a fazer nesta geografia vulcânica.
Dos tempos de Ló ao apocalipse de Hiroxima,
a devastação nunca foi outra coisa que não devastação.
Quero viver aqui como se em mim
ardesse sempre a ânsia do desconhecido.
Talvez o «agora» esteja muito mais distante. Talvez o «amanhã»
esteja mais próximo e o «amanhã» se encontre já no passado.
Todavia agarro a mão do «agora» para percorrer a margem da História
e não o tempo que descreve círculos como o caos das cabras‑montesas.
Sobreviverei eu à velocidade electrónica do amanhã?
Sobreviverei eu ao atraso da minha caravana do deserto?
Tenho trabalho a fazer pelo além‑mundo, como se amanhã não fosse vivo.
Tenho trabalho a fazer pela presença eterna do hoje.
Por isso ouço, pouco a pouco, a formiga no meu coração:
Ajuda‑me a suportar a minha tenacidade.

Poemas

Publicado em

Manuel Alberto Vieira

Atraiçoaria a verdade se aqui colocasse uma lista definitiva e fiável do que ando a ler, pois sou refém de uma indisciplina que, por defeito, não consigo contrariar. Porém, na arrumação possível do caos, sublinho o que mais me tem estimulado. À cabeça, um daqueles adiamentos imperdoáveis: iniciei finalmente a leitura da Odisseia, de Homero (na tradução de Frederico Lourenço). Tendemos a esquecer aqueles que nos trouxeram até aqui, mas por vezes convém travar a marcha e impor o regresso ao princípio, sob pena de perdermos a humildade necessária ao entendimento do tempo. Para as leituras debicadas que precedem o sono, acumulo neste momento o Ensaios sobre Fotografia, de Susan Sontag, o Juro Não Dizer Nunca a Verdade, de Javier Marías, e o omnipresente Cartas a Lucílio, de Séneca (esse livro-casa). A que acrescentaria as leituras mais obedientes de Os Sete Loucos, do singularíssimo Roberto Arlt, e A Casa das Belas Adormecidas, de Yasunari Kawabata. Mas talvez o autor que mais me tem impressionado seja o Daniel Jonas. Um acaso improvável, dada a distância que nos separa na geografia literária, todavia justamente sublinhado. É um caso raro de génio. Acabo de lhe revisitar vários poemas e, a cada livro, o regresso dessa estranha certeza de interrupção de uma qualquer ordem fundamental. A sua música desafia a noção canónica; creio que a recusa, na verdade — segue paralelamente a ela, na margem. É uma espécie de voz futura que nos chega do passado (ou de voz passada que nos chega do futuro) e que, por conseguinte, nunca se deixa apanhar (e muito menos fixar). Transfigura o moderno, colocando-o num certo sentido mais à frente — num tempo a que vagamente aspiramos — através da forma que veste o ritmo e domestica a tentação de fazer tese. Ousar o paradoxo de colocar à cintura deste admirável mundo novo um espartilho à medida da mais austera tradição sem nunca perder o fôlego parece-me uma proeza assinalável.

(Fotografia de Manuel Alberto Vieira – Carlos Lobo)

 

Teatro Vertical

Na Presença da Ausência

Odisseia de Homero

Juro Não Dizer Nunca a Verdade

Os Sete Loucos

A Casa das Belas Adormecidas

Canícula

Oblívio

Bisonte


https://www.flaneur.pt/produto-etiqueta/daniel-jonas/