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Rosa Alice Branco

É quase estranho estar a reler Homens imprudentemente poéticos e continuar a descobrir que cada página é uma obra-prima. E pergunto-me com que ingredientes imperfeitos Valter Hugo Mãe escreve um livro perfeito, página a página.
Distorce, retorce o cânone, seja este qual seja, dá-lhe tantas voltas tresloucadas, vira-o do avesso, e o resultado de todas estas reviravoltas imprudentes é a lição da candura como ímpeto transformador, como a única força de linguagem criadora de cosmos.

O escritor elege, para proteger na escrita, as criaturas desabrigadas e apaziguadoras, as mulheres – como a cega menina Matsu e a criada Sra. Kame – perante a crueldade dos que pensam comandar o destino. Mas neste livro deparamo-nos com o modo como os ódios criam fantasmas carnais conducentes à destruição dos que se deixam tomar pela força alucinante e descontrolada dos mesmos.

Todos os signos, rituais, modos fenoménicos que acontecem no livro só podem remeter para o Japão. Em O Império dos signos é notório o fascínio de Roland Barthes por esse Japão que ele diz ter inventado, e inventou, na medida em que perspectivou, em toda a fruição, a materialidade e sensualidade da gestualidade japonesa.

Também Valter Hugo Mãe se dá aos lugares onde pernoita para escrever, respeita-os e por isso os transfigura, rasgando a escrita em plenitude, desde o léxico à sintaxe, compreendendo que a gestualidade é um ensinamento de linguagem e a linguagem ensina o modo de estar no mundo.

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Alexandra Lucas Coelho

Não é o meu livrinho do comboio (para atravessar a periferia até Lisboa). É o calhamaço de cabeceira mesmo, um dos. Porque estou a reler “O Quarteto de Alexandria”, porque voltei a Alexandria em Novembro, porque voltarei a Alexandria, porque a minha relação com o Médio Oriente começa em Alexandria, e Alexandria, para mim, há 30 anos, começou com Durrell. Entretanto encomendei também a outra biografia que fizeram dele (Ian S. MacNiven), também antiga. Lawrence Durrell está totalmente fora de moda, e imagino que hoje, para muita gente, será (seria: quem o lê agora?) problemático.

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O amor não é uma ideia

(…) O amor não é uma ideia. É uma emoção que pode arrefecer ou aquecer. Vem e vai. É um sentimento que adquire forma e dimensão e tem cinco ou mais sentidos. Por vezes, aparece-nos na forma de um anjo com asas delicadas capazes de nos arrancar da Terra. Por vezes, investe contra nós como um touro, deixa-nos estendidos no chão e vai-se embora. Outras vezes, é uma tempestade que só identificamos depois da devastação que provocou. Outras vezes ainda, cai sobre nós como o orvalho da noite, quando uma mão mágica ordenha uma nuvem errante.
Mas todas estas formas se fundem – se tornam visíveis, perceptíveis e tangíveis – numa mulher, não numa ideia. Amamos a tentação da forma, e a imaginação dedica-se a indagar o que de misterioso e estranho guarda. As almas conhecem-se e desenvolvem proximidade através da forma, que brilha graças à sua essência. E é possível que divirjam na interpretação do que o corpo diz ao corpo e partam em busca de outra transparência, dissolvendo-se em corpos repletos de água, harmonia e música. O amor é caprichoso, mutável, resistente à identidade. É o acometimento que confunde paixão e iluminação. É o que não conheces e sabes que não conheces. É a consumação do significado no não-significado, em virtude da sua excessiva tendência para a gratuitidade e para o esbanjamento. É a antítese da repetição e da pretensão de emendar o ar com cor. Caso contrário, pode converter-se num matrimónio em que a correcção mútua substitui a improvisação da poesia indispensável ao amor. A prosa das tarefas domésticas não serve para conservar duas pêras frescas no prato de mármore, nem para incitar o desconhecido a travar o conhecido. Tem de haver mistério. Tem de haver mistério para que o amor continue a ser surpresa e dádiva. Portanto, não abras o armário que guarda os segredos da natureza dela. (…)

Mahmoud Darwish, in Na Presença da Ausência

Na Presença da Ausência

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Fábula de um Arquitecto

Fábula de um Arquitecto

A arquitectura como construir portas de abrir,
de abrir, ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e teto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.

2.

Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.

João Cabral de Melo Neto, in A Educação Pela Pedra,
Livros Cotovia

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Pintura: Interior Strandgade | Vilhelm Hammershoi | oil painting

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Pedro Eiras

Estou a ler Textos para Nada, de Samuel Beckett, numa edição já antiga (1970) das Publicações Dom Quixote (páginas ásperas, amarelecidas; na capa, o retrato de Beckett, a três quartos: de olhos quase minerais; pele gasta, de iguana; como um fóssil). São ficções breves; memórias, sonhos, quem sabe o quê. Às vezes fazem lembrar os périplos de personagens de Kafka (mas com menos convicções); ou os passeios de personagens de Walser (mas com menos leveza). São textos extemporâneos, claro; penso: se Beckett os escrevesse hoje, conseguiria publicá-los? Vivemos tempos demasiado exigentes de estórias, sentidos, desenlaces – este livro, pelo contrário, perde-se, perde-nos. Para nada, diz o título? Para nada, magnificamente para nada, assim seja.

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No amor…

No amor entre um homem e uma mulher há sempre um momento em que esse amor atinge o seu zénite, em que não há nele nada de consciente, de racional nem de sensual. Esse momento foi para Nekhliúdov na noite da luminosa ressurreição de Cristo. Ao recordar agora Katiucha, de todas as situações em que a vira, esse momento superava todos os outros. A cabeça negra, lisa, brilhante, o vestido branco pregueado, que lhe moldava virginalmente o corpo esbelto e o peito pequeno, e aquele rubor, e aqueles ternos olhos negros brilhantes, um pouco tortos devido à noite sem dormir, e em todo o seu ser, havia duas linhas principais: a pureza virginal do amor não apenas por ele – isso ele sabia -, mas também de um amor por todos e por tudo, não apenas pelo que de bom existe no mundo – até por aquele mendigo com o qual ela trocou beijos.
Nekhliúdov sabia que havia nela esse amor, porque nessa noite e nessa manhã tinha consciência dele, e tinha consciência de que nesse amor se fundia com ela num único ser.
Ah, se tudo tivesse ficado pelo sentimento que houve nessa noite!

Lev Tolstoi, in Ressurreição

Ressurreição

Pintura de Riza-yi `Abbasi (Pérsia 1565–1635)

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Luís Quintais

Estou a reler O mar da fertilidade de Mishima. Li-o pela primeira vez por volta dos meus vinte anos e deixou-me uma impressão indelével. Agora, retomo-o com assombro. Mishima é um dos grandes escritores do século XX. Uma espécie de Proust japonês. No seu melhor é mesmo tão bom como Proust. A impressão com que se fica é que, nos quatro volumes que compõem a tetralogia (Neve de Primavera, Cavalos em Fuga, O Templo da Aurora e A Ruína do Anjo), Mishima terá tocado em qualquer coisa de essencial: um entendimento profundamente inquietante da beleza como compromisso vital com a natureza e com a tradição que, em grande medida, corresponde a um aspecto particular da cultura japonesa, mas que aqui ganha tonalidades que podemos tomar como universais. O suicídio ritual de Mishima em Dezembro de 1970 afigura-se-nos quase inteligível à luz deste compromisso com a beleza que se encena no imenso fresco que é O Mar da Fertilidade. Mishima é aquele que nos revelou o enlace significativo entre a elegância e a violência. De outro modo ainda, em Mishima, toda a sabedoria é a realização e o reconhecimento dos desdobramentos infinitos do amor e da morte. Para lá disso, não existe senão o vazio. Importante dizer que estou a relê-lo em inglês na minha já velha e gasta cópia da Penguin que reúne os quatro volumes. É hoje impossível encontrar a edição portuguesa de O mar da Fertilidade nas livrarias. E se é certo que Mishima não está na moda, valeria porém a pena reeditar este trabalho imenso.

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(Imagem: Público)

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O Homem que Morreu

(…)Depois, o macho começou a passear atrás delas com um ar condescendente; mas sentiu a pata detida pelo limite da corda, e rendeu-se com uma espécie de colapso. Arreava a bandeira, dir-se-ia que minguava e se dissolvia na sombra. Apesar de novo e com um rabo de penas que, embora vistosas, não tinham chegado ao seu auge. O dia voltou, porém, a declinar, e a maré de vida dentro dele fê-lo esquecer o acidente. Quando a galinha favorita deu uma distraída mas provocatória passeata ao seu alcance, atirou-se a ela com todas as penas a vibrar. E o homem que tinha morrido pôde contemplar a vibração instável mas assumida de ave vergada; sem ver a ave mas só a crista de uma onda de vida que, durante um minuto, cobria outra em pleno fluxo de um oscilante oceano de vida. Pareceu-lhe que o destino da vida era afinal mais feroz e coercivo que o destino da morte. A fatalidade da morte uma sombra, se comparada com o destino violento da vida, com a onda implacável da vida.(…)

(…)- O Verbo é como um mosquito que à noite nos pica. Tanto as palavras como os mosquitos atormentam e perseguem o homem até ao túmulo. Mas não conseguem ultrapassar o túmulo. Eu já ultrapassei o local onde as palavras deixam para sempre de morder, o ar é puro, e nada há para dizer: estou sozinho na minha pele, que é muralha de todo o meu domínio.
Tinha curado as feridas, e disfrutava da imortalidade de estar vivo sem impaciência. Porque no túmulo tinha desfeito o nó a que chamamos cuidados. Porque no túmulo tinha largado o eu que luta, se preocupa e cansa. Com um eu destituído de cuidados estava curado, começava a estar completo na sua pele e ria sozinho, satisfeito com a solidão pura, que é uma espécie de imortalidade.(…)

D. H. Lawrence, in O Homem Que Morreu

Pintura de D. H. Lawrence

O Homem Que Morreu

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O Prelúdio

(…)

Eu era como aquele que se debruça de uma barca
A deslocar-se lentamente sobre o seio
De uma água serena, consolado-se
Com as descobertas que o seu olhar faz
Conforme desce ao fundo do abismo,
E vê tantos espectáculos belos – algas, peixes, flores,
Grutas, seixos, raízes e árvores, e imagina ainda mais,
Muitas vezes perplexo e não conseguindo separar
A sombra da realidade, os rochedos e o céu,
As montanhas e as nuvens, reflectidos na profundeza
Daquele curso límpido, de tudo o que ali vive
No seu verdadeiro lugar; agora a sua visão é atravessada
Pelo reflexo da sua própria imagem, por um raio de sol,
E movimentos ondulantes vindos não se sabe de onde,
Dificuldades que tornam a sua tarefa ainda mais atraente;
Tal é a agradável ocupação que há muito
Prosseguimos, inclinando-nos sobre o passado
Com igual sucesso; e raramente podem surgir
Formas mais belas ou mais nítidas que estas,
Para as quais a minha narrativa, indulgente amigo,
Vem chamar a tua atenção.

(…)

William Wordsworth, in O Prelúdio

O Prelúdio

Os livros do Arnaldo

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Uma Paciência Selvagem, de Adrienne Rich

Madeira-De-Sonho

Na madeira velha, baratucha, riscada, da mesinha da máquina de escrever
há uma paisagem, feita de veios, que só uma criança pode ver
ou o eu mais velho da criança,
uma mulher sonhando quando devia estar a bater à máquina
o último relatório do dia. Se isto fosse um mapa,
pensa ela, um mapa decretado para memorizar
podendo ela talvez percorrê-lo, ele mostra
cordilheira atrás de cordilheira esbatendo-se no deserto nebulento,
aqui e além um sinal de aquíferos
e um possível bebedouro. Se isto fosse um mapa
seria o mapa da última idade da sua vida,
não um mapa de escolhas mas um mapa de variações
sobre a escolha maior. Seria o mapa pelo qual
ela poderia ver o fim das escolhas turísticas,
de distâncias azuladas e arroxeadas de romantismo,
pelo qual ela reconheceria que a poesia
não é revolução mas uma forma de saber
por que tem de vir a revolução. Se esta mesinha de madeira baratucha,
produzida em massa, vinda da Companhia de Gás de Brooklyn,
produzida em massa porém duradoura, presente agora aqui,
é o que é porém um mapa-de-sonho
tão renitente, tão simples,
pensa ela, o material e o sonho podem juntar-se
e isso é o poema e isso é o relatório retardatário.

Adrienne Rich, in Uma Paciência Selvagem

Uma Paciência Selvagem