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A infância de Bergman

Apesar de tudo, eu penso nos meu anos de garoto com prazer e curiosidade. Nunca me faltou alimento nem para a fantasia nem para os sentidos, e não me lembro de me ter sentido aborrecido alguma vez. Pelo contrário, os meus dias e as minhas horas estavam sempre repletos de coisas que achava interessantes, cenários inesperados, instantes mágicos. Ainda hoje consigo percorrer a paisagem da minha infância e sentir de novo todo aquele passado de luzes, aromas, pessoas, quartos, instantes, inflexões de voz, objectos. É raro que sejam episódios dignos de serem contados. Essas recordações são comparáveis a filmes curtos ou longos, feitos ao acaso e sem objectivo.
A prerrogativa da infância é podermos mover-nos entre a magia da vida e as papas de aveia que nos dão, entre um medo desmesurado e uma alegria sem limites. (…) Era-me difícil distinguir entre o que era imaginado e o que era real. Se me esforçava, conseguia fazer com que a realidade se mantivesse dentro dos limites do real, mas o que havia eu de fazer dos fantasmas e das almas penadas? E as histórias que me contavam, as sagas? Seriam reais? E Deus e os anjos? E Jesus Cristo, Adão e Eva, o Dilúvio? O que se passara afinal entre Abraão e Isaac? Era verdade que ele pensou cortar o pescoço ao filho? É que eu olhava excitado para uma água-forte de Doré, identificava-me com Isaac, e aquilo para mim tornava-se realidade: o meu pai também pensava em cortar-me o pescoço, um dia! E que será de ti, Ingmar, se o anjo salvador chegar tarde? Bem, terão de chorar a minha morte, pensava eu. Ficaria banhado em sangue com um sorriso pálido no meu rosto. Era a realidade.

Ingmar Bergman, in Lanterna Mágica