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Hamnet

As filas e filas de maçãs movem-se, abanam, tremem nas prateleiras. Cada maçã está centrada numa cavidade especial, entalhada nas prateleiras de madeira que percorrem as paredes deste pequeno armazém.
Treme, treme, abana, abana.
(…)
As maçãs dão cambalhotas; vão surgindo pedúnculos dos lados de baixo, há cálices voltados para os lados, depois para trás, depois para cima, e depois para baixo. O ritmo das pancadas varia: pára; abranda; recomeça; interrompe-se de novo.
Os joelhos de Agnes estão erguidos, abertos na oblíqua como asas de borboleta. Os pés, ainda dentro das botas, repousam na prateleira oposta; as mãos estão apoiadas na parede caiada de branco. As suas costas endireitam-se e arqueiam-se, aparentemente por iniciativa própria, e da garganta saem-lhe sons baixos idênticos a rugidos. É apanhada de surpresa por o seu corpo se comportar desta maneira.
(…)
No estreito espaço entre ela e a prateleira oposta encontra-se o o professor de Latim. Está de pé dentro do pálido V das suas pernas. Tem os olhos fechados; os dedos agarrados à curva das suas costas. Foram as mãos dele que lhe desataram os laços no pescoço, que lhe puxaram para baixo a camisa, que trouxeram à luz os seus seios – e como eles pareceram espantados e brancos, assim ao ar daquele modo, em pleno dia, em frente de outrem; os seus olhos castanho-rosados retribuíram o olhar, surpreendidos. Todavia, foram as mãos dela que levantaram as saias, que a impulsionaram para aquela prateleira, que puxaram para si o corpo do professor de Latim. Tu, disseram-lhe as mãos, eu escolhi-te.
E agora existe isto – este encaixe. É inteiramente diferente de tudo o que sentiu antes. Faz-lhe lembrar uma mão a calçar uma luva, um cordeiro, molhado, a deslizar para fora de uma ovelha, um machado a rachar um tronco, uma chave a rodar uma fechadura oleada. Como é possível, pensa, olhando para a cara do professor. que uma coisa encaixe tão bem, com tal precisão, com uma tal sensação de exactidão?
As maçãs, afastando-se dela de um lado e de outro, volteiam e entrechocam-se nas suas concavidades.

Maggie O’Farrell, em Hamnet

Hamnet

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O Prazer de Vaguear

[…] cheguei à conclusão de que aquele que não encontra todo o universo encerrado nas ruas da sua cidade, não encontrará uma rua original em nenhuma outra cidade do mundo. E não a encontrará porque o cego em Buenos Aires é cego em Madrid ou em Calcutá…
Recordo-me perfeitamente de que os manuais escolares pintavam os senhores ou os jovens cavaleiros que perambulavam pelas ruas como futuros perdulários, mas eu aprendi que a escola mais útil para o conhecimento é a escola da rua, escola amarga, que deixa na boca o sabor de um prazer agridoce e que ensina tudo aquilo que os livros nunca dirão. Porque, desgraçadamente, os livros são escritos por poetas ou idiotas.
No entanto, passará ainda muito tempo antes que as pessoas se dêem conta da utilidade de uns banhos de multidão e de rua. Mas no dia em que aprendam isso, serão mais sábias, mais perfeitas e, sobretudo, mais indulgentes. Sim, indulgentes. Porque já pensei mais do que uma vez que a magnífica indulgência que fez de Jesus eterno, resultou da sua permanente vida na rua. E da sua comunhão com os homens bons e maus, e com as mulheres honestas e também com as que não o eram.

Roberto Arlt, in Águas-Fortes Portenhas

Águas-Fortes Portenhas

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O facto de exigirmos sempre o mais elevado…

“O facto de exigirmos sempre o mais elevado, o mais profundo, o mais fundamental, o mais extraordinário, onde só há o mais ínfimo, o mais superficial e o mais vulgar, torna-nos realmente doentes. Isso não faz progredir o ser humano, pelo contrário, mata-o. Vemos decadência onde deveríamos esperar progresso, vemos desespero onde deveríamos ter esperança, esse é o nosso erro, a nossa infelicidade. Exigimos sempre tudo onde, naturalmente, só se pode exigir um pouco, e isso deprime-nos. Queremos ver o ser humano no lugar mais alto, e ele logo resvala para a decadência; na verdade, queremos alcançar tudo e, realmente, não chegamos a nada. E, naturalmente, fazemos a nós próprios as maiores exigências, maiores do que tudo, e, ao fazê-lo, não tomamos na devida conta a natureza humana que não foi criada para estas exigências máximas, maiores do que tudo. O mundo sobrestima em geral o que é humano. Falhamos sempre porque pusemos a fasquia muitos por cento mais alto do que é próprio para nós. E só vemos, se é que vemos, por toda a parte e para onde quer que o nosso olhar se dirija, falhados que puseram a fasquia alta de mais. Mas, por outro lado, digo a mim próprio, onde iríamos nós parar se puséssemos a fasquia sempre baixo de mais?”

Thomas Bernhard, in Betão

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O Tao da Flâneur

– O que é que gostas mais de fazer no mundo, Pooh?
– Bem, – disse o Pooh – o que eu mais gosto… – e depois teve de parar e pensar. Porque embora comer mel fosse uma coisa muito boa, havia um momento mesmo antes de o começar a comer que era melhor do que comê-lo, só que ele não sabia como é que se chamava.
E então pensou que estar com o Christopher Robin era uma coisa muito boa de fazer, e ter o Leitão por perto era uma coisa muito simpática de ter; e então, depois de ter pensado tudo, disse: “O que eu gosto mais no mundo inteiro é eu e o leitão irmos visitar-te, e tu dizeres ‘Que tal comermos qualquer coisinha?’ e eu dizer ‘Bem, eu não me importava de comer qualquer coisinha, e tu, Leitão?’, e ser um dia bom para cantigas, e os pássaros estarem a cantar.”

Criança e Rosa

A Casa do Largo Puff

Tao Te King – Livro do Caminho e do Bom Caminhar

Nobreza de Espírito – Um Ideal Esquecido

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Francisco e o Pequenino

Gennady Gogoliuk

Ela é bela. Não, é mais que bela. É a própria vida no seu brilho mais terno de aurora. Não a conheceis. Nunca vistes um único dos seus retratos, mas a evidência está lá, a evidência da sua beleza, a luz sobre os seus ombros, quando se inclina sobre o berço, quando vai escutar a respiração do pequeno Francisco de Assis, que ainda não se chama Francisco, que não passa de um pouco de carne rosada e enrugada, de um homenzinho mais desarmado do que um gatinho ou que um arbusto. Ela é bela, graças a este amor de que se despoja, a fim de com ele revestir a nudez do menino. É bela, pela solicitude com que acorre, uma e outra vez, ao quarto da criança. Todas as mães possuem esta beleza. Todas têm esta justeza, esta verdade, esta santidade. Todas as mães têm esta graça que causa ciúme ao próprio Deus – o solitário, sob a sua árvore de eternidade. Sim, não a podeis imaginar, a não ser revestidos desta roupagem do seu amor. A beleza das mães supera a glória da natureza. Uma beleza inimaginável, a única que poderíeis imaginar para esta mulher atenta a todos os movimentos do menino.

Christian Bobin, in Francisco e o Pequenino

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Perturbações

Todas as noites representavam a mesma ópera, e todas as noites ele ouvia distintamente as palavras e a música. Mas não dominava a língua. Ainda assim, lá estava ele todas as noites à janela, à escuta. Deste modo se apaixonou por uma das actrizes, sem sequer a ter visto. Nunca o teatro o tinha emocionado tanto como nessa ocasião; a paixão das melodias era para ele como o bater de asas de grandes pássaros sombrios, como se pudesse ver as linhas que o seu voo traçava na sua alma. Não eram paixões humanas o que ouvia, não, eram paixões que saíam voando das pessoas, como de gaiolas demasiado acanhadas e vulgares. Na sua excitação, nunca pensava nas pessoas que, do outro lado, invisíveis, davam corpo a essas paixões; quando tentava imaginá-las, logo via diante de si labaredas escuras, dimensões descomunais como corpos que crescem na escuridão ou olhos humanos que brilham como espelhos de poços muito fundos. O que ele amava nessa altura, sob o nome daquela actriz desconhecida, eram essas chamas sombrias, os olhos no escuro, o bater de asas negras.

Robert Musil, in As Perturbações do Pupilo Törless

Pintura: Louis Soutter The Sun is Blackened (Le Soleil se noircit) 1939

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Viragem aos Oitenta de Henry Miller

«Para todas as vossas enfermidades, dou-vos risos.» Quando olho para a minha vida, que tem sido cheia de momentos trágicos, vejo-a mais como uma comédia do que como uma tragédia. Uma dessas comédias nas quais sentimos o coração a despedaçar-se enquanto rimos a bandeiras despregadas. Que melhor comédia pode haver? Quem se leva a sério está condenado.
Outra questão é a tragédia em que vive a esmagadora maioria dos seres humanos. Aí, não encontro quaisquer elementos cómicos de alívio. Quando falo de uma saída indolor para os milhões que sofrem não o faço com cinismo ou como alguém que julga não haver qualquer esperança para a humanidade. A vida em si nada tem de errado. O problema está no oceano no qual nadamos e ao qual nos adaptamos ou naufragamos. Temos, porém, o poder, enquanto seres humanos, de não poluir as águas da vida nem destruir o espírito que nos anima.

Henry Miller, in Viragem aos Oitenta seguido de Viagem a Uma Terra Antiga

Viragem Aos Oitenta seguido de Viagem a Uma Terra Antiga

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Carta de Joseph Roth a Gustav Kiepenheuer

(…)Escrevia artigos absolutamente estúpidos e, consequentemente, ganhei nome. Escrevia maus livros e tornei-me conhecido. Por duas vezes fui rejeitado por Kiepenheuer. Ele ter-me-ia rejeitado pela terceira vez, se entretanto não nos tivéssemos conhecido.
Bebemos uma aguardente num domingo. Ele sentiu-se mal. Os dois ficámos doentes por a termos bebido. Declarámos amizade por uma questão de compaixão, apesar da diferença das nossas naturezas, que só se harmonizam no álcool. Kiepenheuer é um vestfaliano e eu ostfaliano. Dificilmente se consegue imaginar um contraste maior. Ele é um idealista, eu sou céptico. Ele ama os judeus, eu não. Ele é um adepto de progresso, eu sou um reacionário. Ele está sempre jovem, eu estou sempre velho. Ele vai fazer cinquenta anos, eu duzentos. Eu podia ser seu bisavô, se não fosse seu irmão. Eu sou radical, ele é conciliante. Ele é gentilmente indeterminado, eu sou conciso. Ele é justo, eu sou injusto. Ele é optimista, eu sou pessimista.
Deve certamente haver ligações secretas entre nós os dois. Pois, por vezes estamos de acordo com tudo. É como se fizéssemos mutuamente concessões, mas não há concessões nenhumas. Pois, ele não tem nenhuma sensibilidade para o dinheiro. Partilhamos os dois esta característica. É o homem mais cavalheiro que conheço. Eu também, Isso tem ele de mim. Ele perde dinheiro com os meus livros. Eu também. Ele acredita em mim. Eu também. Ele aguarda o meu sucesso. Eu também. Ele está confiante na posteridade. Eu também.
Somos inseparáveis; é a qualidade dele.

Joseph Roth, 1930

Gustav Kiepenheuer (1880-1949), editor alemão que fundou em 1909 a editora Gustav Kiepenheuer Verlag

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José Ángel Cilleruelo

En una nota final el autor del libro que acabo de leer, Carlos Poças Falcão (1959), confirma la extraña concepción de este libro, titulado «Sombra Silêncio» (2018). La convivencia del tono y temas diversos, cierta asimetría formal, la impresión de estar frente a poemas que se han quedado olvidados mucho tiempo en el fondo de un cajón. El primer efecto de la lectura es la nostalgia de lo que no se ha leído: la perfección constructiva de los libros anteriores, la complejidad del desarrollo temático, no ya de los poemas, sino de las series que los engastaban con admirable precisión. En una cita inicial el poeta reconoce también haber sido «convencido» para reunir estos poemas y cuando cierra el volumen el lector comprende la doble necesidad, la de convencerse en publicar lo heterogéneo, pero también la de quien ha deseado convencerle.
Junto a esta extrañeza por la imperfección del conjunto, el lector tiene sobre todo la impresión, al concluir, de que el libro no ha sido, en absoluto, inocuo. Casi en contraluz, evoca la sensación de un estruendo ensordecedor y al mismo tiempo la de una apagada armonía que sigue hechizándole. Y ambas sensaciones opuestas se confunden en el poso que ha dejado el libro con la rotundidad de una huella sobre arena húmeda. Los jirones formales de la estructura han resultado más permeables a aquello, tan imprevisible, que se recuerda de un libro. Es la paradoja de «Sombra Silêncio». El libro ha desatendido la alta exigencia de elaboración artística de su autor para, tal vez, hacerlo crecer poéticamente.
La clave que desvela esta contradicción se descubre en el tema del libro. El ruido del mundo. Siempre el mundo ha disgustado, pero nos adentramos en una época donde la aceleración y el ensordecimiento amenazan las convicciones, sean unas u otras: «Daqui, deste ruido, serei eu, Senhor, capaz / de te ouvir?». Amenazan la idea de construcción perfecta que tuvo el arte, el saber, los valores, las creencias (cualquier interpretación de Senhor es válida)… en el curso de la vida. Y acaso el eco de los poemas impacte en el lector que le ha acompañado a lo largo de las décadas más que su artificio porque sintoniza con una experiencia común de lo real contemporáneo. Esa necesidad de seguir en el vacío orando con las viejas armonías casi consumidas, de palparse antes de afirmar que uno sigue siendo quien cree que es. O ya le ha arrastrado el tsunami de la época. Más que un edificio de palabras con el que defenderse, «Sombra Silêncio» evoca la indefensión del sujeto ante los restos que cada amanecer el mar dispersa por la playa.

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