Habitante das escassas memórias ou testemunhos daqueles que com ele conviveram, do retrato tremido que nos chega de Rui Knopfli percebe-se essa “figura prematuramente frágil”, onde a ira se apaziguou pelo desgaste. É difícil dizer exactamente onde, mas o mesmo banco de pedra que um dia ergueu nos versos, ainda lá está, sujeito à vaga inclinação das lembranças. E nele o poeta, “pendurado num eterno cigarro”, fazendo do castigo um gosto, ainda que lhe pese a própria voz. E se o acento lírico não cedeu à ferrugem, em consequência da sua “linguagem castigada com desvelo de amante”, transparece dolorosamente “uma mágoa de naufrágios, e derrotas cruéis, que impõem o exílio do espaço habitado e bem amado”.
Diogo Vaz Pinto
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DESPEDIDA
Tudo entre nós foi dito.
Estamos cansados e tristes
neste outono de folhas pairando
e caindo.
Entre nós as palavras colocam um mundo de
silêncio e vazio estéril.
Os próprios sonhos se encheram de neblinas
e o tempo os amarelece.
Outono decisivo de folhas secas
e bancos abandonados de cimento frio
onde não cantam aves
e o vento desce em brandos rodopios.
Apenas uma vaga angústia presente,
uma saudade sem recomeços,
a lembrança tépida a gelar como
veios de mármore.
Tudo entre nós foi dito,
olhamos o apodrecer do parque,
o vento, o crepitar leve das folhas
e, sem ressentimentos, dizemos adeus.
Rui Knopfli, in Uso Particular, Do Lado Esquerdo – http://www.flaneur.pt/produto/uso-particular/
FIM DE TARDE NO CAFÉ
Na tarde cor de azebre
falávamos de coisas amargas.
Ali, na mesa triste do café
com moscas adejando
sobre restos de açúcar
e um copo de água
morna de esquecida,
falávamos da amargura das coisas,
entre rostos graníticos e enxovalhados,
entre estranhos e estranhos
de estranhos e os que,
nada tendo de estranhos,
cuidam de cuidar
o que se passa entre estranhos.
Na tarde comprida e silenciosa
tecíamos gestos inúteis
e palavras entre dentes,
mergulhados na paisagem geométrica
do café. Do café tão cheio de gente
e fumo e moscas e caras tristes
e afinal tão profundamente,
tão desesperadamente vazio.
Rui Knopfli, in Uso Particular, Do Lado Esquerdo – http://www.flaneur.pt/produto/uso-particular/
O CAMPO
Saio para o campo. O campo
aqui não é o campo, mas a savana
eriçada de micaias e capim
feio e desigual. Habitantes
do seu mundo, os negros ignoram-me,
empenhados em suas tarefas quotidianas.
Olho para as coisas abandonadas,
latas escuras de ferrugem, lonas
pardas de pneus, ferros
retorcidos sem jeito. Entre isso
o capim espreita, descolorido, espigado
e hirsuto. Nada me sugere a face
aveludada de uma paisagem pastoril,
rosto tranquilo de criança sonhando.
Mas eles estão no seu mundo,
e eu passeio no campo.
Rui Knopfli, in Uso Particular, Do Lado Esquerdo – http://www.flaneur.pt/produto/uso-particular/