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A pequena amiga de Robert Walser

Numa cama está deitada uma jovem rapariga, morta. Devo confessar que é raro encontrar um quadro que me toque tão profundamente. Três a quatro alunas, companheiras de escola da falecida, estão perante o mistério, que com a sua sublime grandeza atinge as almas florescentes com um sopro frio. Estão angustiadas; não se entendem nos seus exercícios e jogos: os pais, as casas, os campos, a igreja. No entanto, decerto irão entender tudo isto no dia seguinte ou até na próxima hora, retomando as suas actividades habituais. Mas agora, despedindo-se do corpo da sua amiga, tudo o que lhes era familiar torna-se estranho, a estranheza, por outro lado, torna-se familiar. Morrer é tão grandioso e, ao mesmo tempo, tão infinitamente insignificante. É como outra coisa qualquer, como colher cerejas na época em que amadurecem ou como andar de trenó no Inverno ou como beber café. Têm os lenços à frente dos rostos, mas nenhuma chora o choro belo e macio de uma dor natural. Um enorme espanto apoderou-se delas, misturado com o esforço de entender o que não pode ser entendido, impedindo-as de chorar naturalmente. Ó, este espanto das raparigas é alto e grande como uma cumeeira, como montanhas aladas. Os vestidinhos que trazem parecem-lhes ter sido levados para bem longe. Mas elas irão senti-los de novo, a sua necessidade, o seu encanto junto à pele. Agora é como se não tivessem pele. O quarto, outrora aconchegante e animado, está agora silencioso, lúgubre. Também o quarto está morto, o relógio na parede, os móveis, contudo os objectos irão renascer da falta de sentido, de significado, readquirindo um sentido, a balança irá parecer às crianças, pacientes e bem-educadas, suportando esta hora de frieza violentamente silenciosa, de novo agradável e simbólica. A esperança ferida reencontra sempre o rumo certo.

Robert Walser, in Histórias de Imagens
Edições Cotovia

Pintura: Albert Anker, A Pequena Amiga (1862)

Histórias de Imagens

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Aforismos, Karl Kraus

“Temos de escrever sempre de tal forma, como se fosse a primeira e a última vez. Dizer tanto como se fosse uma despedida e tão bem como se fosse uma estreia.

Eu não domino a língua, mas a língua domina-me perfeitamente. Ela não é servidora dos meus pensamentos. Vivo numa simbiose com ela de onde recebo pensamentos, e ela pode fazer de mim o que quiser. Eu obedeço-lhe incondicionalmente. É a partir da palavra que o jovem pensamento salta ao meu encontro, formando posteriormente a língua que o criou. Tal graça de prolificidade em matéria de pensamentos faz uma pessoa cair de joelhos e transforma todo o dispêndio de um cuidado inquieto em obrigação. A língua é rainha e senhora dos pensamentos, e a quem inverter tal relação, ela far-se-á útil em casa, mas sem lhe franquear o seu seio.

A palavra mais antiga deve ser estranha quando vista de perto, recém-nascida, e deve levantar dúvidas quanto à sua condição de viva. Nesse caso, vive. Ouvimos o bater do coração da língua.”

“Arranho frequentemente a mão com a pena, e só aí fico com a certeza de que vivi o que está escrito.”

Karl Kraus, in Aforismos – http://www.flaneur.pt/produto/aforismos/

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A Ordem do Dia

Mas para se compreender melhor o que é a reunião de 20 de fevereiro, para captar bem o seu carácter de eternidade, é preciso passar a chamar estes homens pelo seu nome. Já não são Günther Quandt, Wilhelm von Opel, Gustav Krupp, August von Finck a estar ali, nesse fim de tarde de 20 de fevereiro de 1933, no palacete do presidente do Reichstag; são outros nomes que é preciso mencionar. Porque Günther Quandt é um criptónimo, dissimula algo bem diferente do homemzarrão que suja os bigodes e se mantém gentilmente no seu lugar, em volta da mesa de honra. Por detrás dele, mesmo atrás, está uma silhueta bem mais imponente, uma sombra tutelar, tão fria e impenetrável como uma estátua de pedra. Sim, sobrepujando poderosamente, feroz, anónima, a figura de Quandt, e conferindo-lhe essa rigidez de máscara, mas de uma máscara que se colasse ao rosto melhor do que a própria pele, adivinha-se acima dele: Accumulatoren-Fabrick AG, a futura Varta, que nós conhecemos, uma vez que as pessoas morais têm os seus avatares, tal como as divindades antigas assumiam diversas formas e, ao longo do tempo, incorporavam outros deuses.
É pois esse o nome autêntico de Quandt, o seu nome de demiurgo, visto que ele, Günther, não passa de um montinho de carne e osso, como o leitor e eu, e uma vez que, depois dele, os filhos e os filhos dos filhos hão de por sua vez ocupar o trono. Mas o trono, esse, permanece, enquanto o montinho de carne e osso apodrece na terra. Assim, os vinte e quatro não se chamam nem Rosterg, nem Heubel, como os seus cartões de identidade nos fazem crer. Chamam-se BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens, Allianz, Telefunken. Por estes nomes, conhecemo-los. Conhecemo-los até muito bem. Estão aí, no meio de nós. São os nossos carros, as nossas máquinas de lavar, os nossos produtos de limpeza, os nossos despertadores, o seguro da casa, a pilha do relógio. Estão aí, em toda a parte, sob a forma de coisas. O nosso quotidiano pertence-lhes. Cuidam de nós, vestem-nos, iluminam-nos, transportam-nos pelas estradas do mundo, embalam-nos. E os vinte e quatro homens presentes no palacete do presidente do Reichstag, nesse 20 de fevereiro, são apenas os seus mandatários, o clero da grande indústria; os sacerdotes de Ptah. Mantêm-se aí impassíveis, como vinte e quatro máquinas de calcular às portas do inferno.

Éric Vuillard, in A Ordem do Dia
Edição Dom Quixote

Pintura: Potentats d’ Imfirmités – Louis Soutter

A Ordem do Dia

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A infância de Bergman

Apesar de tudo, eu penso nos meu anos de garoto com prazer e curiosidade. Nunca me faltou alimento nem para a fantasia nem para os sentidos, e não me lembro de me ter sentido aborrecido alguma vez. Pelo contrário, os meus dias e as minhas horas estavam sempre repletos de coisas que achava interessantes, cenários inesperados, instantes mágicos. Ainda hoje consigo percorrer a paisagem da minha infância e sentir de novo todo aquele passado de luzes, aromas, pessoas, quartos, instantes, inflexões de voz, objectos. É raro que sejam episódios dignos de serem contados. Essas recordações são comparáveis a filmes curtos ou longos, feitos ao acaso e sem objectivo.
A prerrogativa da infância é podermos mover-nos entre a magia da vida e as papas de aveia que nos dão, entre um medo desmesurado e uma alegria sem limites. (…) Era-me difícil distinguir entre o que era imaginado e o que era real. Se me esforçava, conseguia fazer com que a realidade se mantivesse dentro dos limites do real, mas o que havia eu de fazer dos fantasmas e das almas penadas? E as histórias que me contavam, as sagas? Seriam reais? E Deus e os anjos? E Jesus Cristo, Adão e Eva, o Dilúvio? O que se passara afinal entre Abraão e Isaac? Era verdade que ele pensou cortar o pescoço ao filho? É que eu olhava excitado para uma água-forte de Doré, identificava-me com Isaac, e aquilo para mim tornava-se realidade: o meu pai também pensava em cortar-me o pescoço, um dia! E que será de ti, Ingmar, se o anjo salvador chegar tarde? Bem, terão de chorar a minha morte, pensava eu. Ficaria banhado em sangue com um sorriso pálido no meu rosto. Era a realidade.

Ingmar Bergman, in Lanterna Mágica

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O tempo, nosso melhor alimento

“…O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo o nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é um pomo exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos de um artesão dia após dia; existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes da nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil dos nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia; rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com muita ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não se irritando contra a sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve por nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é; por isso, ninguém em nossa casa há de dar nunca o passo mais largo que a perna: dar o passo mais largo que a perna é o mesmo que suprimir o tempo necessário à nossa iniciativa; e ninguém em nossa casa há de colocar nunca o carro à frente dos bois: colocar o carro à frente dos bois é o mesmo que retirar a quantidade de tempo que um empreendimento exige; (…) caprichoso como uma criança, não se deve contudo retrair-se no trato do tempo, bastando que sejamos humildes e dóceis diante de sua vontade, abstendo-nos de agir quando ele exige de nós a contemplação, e só agirmos quando ele exigir de nós a ação, que o tempo sabe ser bom, o tempo é largo, o tempo é grande, o tempo é generoso, o tempo é farto, é sempre abundante em suas entregas: amaina nossas aflições, dilui a tensão dos preocupados, suspende a dor aos torturados, traz a luz aos que vivem nas trevas, o ânimo aos indiferentes, o conforto aos que se lamentam, a alegria aos homens tristes, o consolo aos desamparados, o relaxamento aos que se contorcem, a serenidade aos inquietos, o repouso aos sem sossego, a paz aos intranquilos, a umidade às almas secas; satisfaz os apetites moderados, sacia a sede aos sedentos, a fome aos famintos, dá a seiva aos que necessitam dela, é capaz ainda de distrair a todos com seus brinquedos; em tudo ele nos atende, mas as dores da nossa vontade só chegarão ao santo alívio seguindo esta lei inexorável: a obediência absoluta à soberania incontestável do tempo…”

Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica

Fotografia de Katia Chausheva

Os livros do Arnaldo

Lavoura Arcaica

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O Fulgor do Relâmpago, Rosillo

O Fulgor do Relâmpago

Há coisas que a vida te dá quando já mal
podias esperá-las, e sua luz
maravilhosa, elementar, puríssima,
faz-te feliz de súbito. E desgraçado,
pois compreendes que já não será teu
esse milagre agora e que não deves
às cegas entregar-te ao que era
próprio talvez de outro momento teu,
de um momento anterior, quando ainda tinhas
forças para ser livre.
Mas deixa-te levar e vive essa beleza
com coragem, sem medo. Para quê pensar
no que te convém. É fugaz a ventura.
Não a desprezes. Agarra-a. E esgota
o fulgor do relâmpago.
Depois,
tempo terás para continuar morrendo.

Eloy Sánchez Rosillo, As Coisas como Foram, Assírio & Alvim – http://www.flaneur.pt/produto/as-coisas-como-foram/

Pintura: The Angel Standing in the Sun, Turner

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O Pobre Tolo

“Somos um sonho divino que não se condensou, por completo, dentro dos nossos limites materiais. Existe, em nós, um limbo interior; um vago sentimental e original que nos dá a faculdade mitológica de idealizar todas as coisas. (…) Se fôssemos um ser definido, seríamos então um ser perfeito, mas limitado, materializado como as pedras. Seríamos uma estátua divina, mas não poderíamos atingir a Divindade. Seríamos uma obra de arte e não vivente criatura, pois a vida é um excesso, um ímpeto para além, uma força imaterial, indefinida, a alma, a imperfeição.
A vida é uma luta entre os seus aspectos revelados e o limbo em que eles se perdem e ampliam até à suprema distância imaginável; uma luta entre a realidade e o sonho, a Carne e o Verbo.
Entre nós, o Verbo não encarnou inteiramente. Somos corpo e alma, verbo encarnado e verbo não encarnado, a matéria e o limbo, o esqueleto de pedra e um fumo que o encobre e ondula em volta dele, e dança aos ventos da loucura…
E aí tendes um pobre tolo sentimental, uma caricatura elegíaca.
Neste limbo interior, neste infinito espiritual, vive a lembrança de Deus que alimenta a nossa esperança, e transfigura esse bicho do Demónio, que anda por esses boulevards, vestido à moda ou coberto de farrapos.
Ardemos num incêndio de esperança, para que reste de nós uma lembrança, um fumo que sobe e não se apaga.
Tudo é memória: um fumo leve, em mil visagens animadas; ou denso, em formas inertes e sombrias; e, ao longe, a grande fogueira invisível que os demónios e os anjos alimentam.
Vivo, porque espero. Lembro-me, logo existo.”

Teixeira de Pascoaes, in ‘O Pobre Tolo’

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José Oliveira

Vida e Morte de Uma Sombra

“Olhai, não tenho rosto, o que exibo é a cara do instante”
Edmond Jabés

Sombra de ninguém exilada nos meus pulmões,
sombra antiga dos pulmões
de que mapa ou desvairado país foges?
Dói a claridade, dói a crosta inicial desta sílaba,
mas dói sobretudo a vasta ausência,
inclinada sobre o meu nome.

Dói alguém no centro da idade,
dói a ignorância, a luz que falta, tudo o que treme,
o meu nome antes da pobreza,
doem as clareiras que os deuses abriram no meu ventre,
o salitre das crenças,
espécie de tristeza no canto dos relâmpagos,
ofegante respiração do Inverno.

Mas a sombra é um lugar corajoso
onde os dias terminam
atrás da luz ou atrás de mim
enquanto durmo por pudor ou tédio.
Tudo está intacto enquanto envelheço –
a humidade, a memória, rara água nas mãos –
tudo é difícil dentro da sombra
no silêncio tardio das orações, no frio,
na doçura negra.

Cinza, pólen, poeira: o que resta do mundo dos vivos.

José Oliveira, in Livro de Obra

Pintura: James Abbot McNeill Whistler, Arrangement in Grey and Black No.1 (1871), conhecido como Whistler’s Mother, Musée d’Orsay, Paris

Livro de Obra