de Gennady Aygi
é
(talvez)
o vento
que embala – tão gentil
(para a morte)
o coração
Imagem: Josef Koudelka
de Gennady Aygi
é
(talvez)
o vento
que embala – tão gentil
(para a morte)
o coração
Imagem: Josef Koudelka
de Gennady Aygi
Consideremos alguém que não há muito nos desagradasse, que porventura até criasse em nós sentimentos negativos, consideremos essa pessoa enquanto dorme.
Por alguma razão, sentiremos pena dela. Pena das suas mangas que estão à vista, das suas mãos. Pena das suas roupas, por alguma razão. (Desperto, a sua roupa lembra uma armadura “mundana”, “institucional”, “familiar”.)
Ele é todo confiança em Algo, em Algum. E naturalmente em Alguém que é incomensuravelmente maior do que nós, que o observamos.
Mas mesmo então, há também a confiança em nós.
Imagem: fotografia de Alfred Stiegltiz
SONO-E-POESIA (notas), Gennady Aygi
(10)
Acordar é, pela milésima vez, “nascer de novo”.
E, no entanto, de onde nos virá aquele arrependimento por alguma coisa que nos traz cada despertar? Porventura choramos inconscientemente a “materialidade” da vida, que foi consumida, sem nos darmos conta, durante a noite – e pela milésima vez – na fogueira escura e muda do Sono?
Imagem: Igor Vulokh (pintor e amigo de Gennady Aygi, que inclusivamente criou ilustrações especificamente para trabalhos poéticos seus )
Atraiçoaria a verdade se aqui colocasse uma lista definitiva e fiável do que ando a ler, pois sou refém de uma indisciplina que, por defeito, não consigo contrariar. Porém, na arrumação possível do caos, sublinho o que mais me tem estimulado. À cabeça, um daqueles adiamentos imperdoáveis: iniciei finalmente a leitura da Odisseia, de Homero (na tradução de Frederico Lourenço). Tendemos a esquecer aqueles que nos trouxeram até aqui, mas por vezes convém travar a marcha e impor o regresso ao princípio, sob pena de perdermos a humildade necessária ao entendimento do tempo. Para as leituras debicadas que precedem o sono, acumulo neste momento o Ensaios sobre Fotografia, de Susan Sontag, o Juro Não Dizer Nunca a Verdade, de Javier Marías, e o omnipresente Cartas a Lucílio, de Séneca (esse livro-casa). A que acrescentaria as leituras mais obedientes de Os Sete Loucos, do singularíssimo Roberto Arlt, e A Casa das Belas Adormecidas, de Yasunari Kawabata. Mas talvez o autor que mais me tem impressionado seja o Daniel Jonas. Um acaso improvável, dada a distância que nos separa na geografia literária, todavia justamente sublinhado. É um caso raro de génio. Acabo de lhe revisitar vários poemas e, a cada livro, o regresso dessa estranha certeza de interrupção de uma qualquer ordem fundamental. A sua música desafia a noção canónica; creio que a recusa, na verdade — segue paralelamente a ela, na margem. É uma espécie de voz futura que nos chega do passado (ou de voz passada que nos chega do futuro) e que, por conseguinte, nunca se deixa apanhar (e muito menos fixar). Transfigura o moderno, colocando-o num certo sentido mais à frente — num tempo a que vagamente aspiramos — através da forma que veste o ritmo e domestica a tentação de fazer tese. Ousar o paradoxo de colocar à cintura deste admirável mundo novo um espartilho à medida da mais austera tradição sem nunca perder o fôlego parece-me uma proeza assinalável.
(Fotografia de Manuel Alberto Vieira – Carlos Lobo)
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