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Bach – Pedro Eiras

É noite, e eu ando contigo às escuras no corredor. Faremos muitas vezes este caminho, até adormeceres. Os meus olhos habituam-se, e um pouco de luz atrás das portadas revela a forma das estantes. Vejo o suficiente para não ir contra as coisas; e de tanto ir e vir no corredor já sei quantos passos cabem entre as paredes. Saberia fazer este caminho mesmo de olhos fechados.
Seguro-te contra mim. Sinto o teu sono a chegar: no ritmo da tua respiração, no modo como vais deixando cair a cara sobre o meu ombro. Aos poucos, ao ritmo dos meus passos, na penumbra da casa, sossegas. E eu sinto o cheiro da tua pele, do teu cabelo, o calor do teu corpo no escuro. Conforme os teus braços deixam de me agarrar, seguro-te com mais força nas minhas mãos.
[…] Mas murmuro sempre, continuo a murmurar para ti, sempre, Mache dich, mein Herze, rein…, como se estas notas de música pudessem proteger-nos, esses pequenos sons, um pouco de calor entre os nossos corpos. Uma breve melodia, no meio da noite, tudo o que temos, tudo o que existe em nós.
 
Pedro Eiras, in Bach

Pintura: Emanuel de Witte, Interior com mulher tocando virginal

Bach

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Jacquemard e Júlia – René Char

Outrora, no momento em que as estradas se harmonizavam no seu declínio, a erva erguia ternamente as suas hastes e alumiava as suas claridades. Os cavaleiros diurnos nasciam ao olhar do seu amor e os castelos das bem-amadas contavam tantas janelas como no seio do abismo as ténues tempestades.
Outrora a erva conhecia mil insígnias que não se contrariavam. Era a providência dos rostos banhados de lágrimas. Encantava os animais e abrigava o erro. E era tão extensa como o céu que venceu o medo do tempo e reduziu a dor.
Outrora a erva era bondosa para os loucos e hostil para o carrasco, ligava-se em renovado amor ao limiar de sempre, inventava jogos palpitantes de asas no sorriso (tão perdoados quão fugitivos jogos…), não era dura para os que tendo perdido o caminho o desejassem perdido para sempre.
Outrora a erva tinha estabelecido que a noite vale menos que o seu poder, que as nascentes não complicam por capricho o seu percurso, que o grão ajoelhado está já a meio caminho do bico do pássaro. Outrora terra e céu odiavam-se, mas terra e céu viviam.
A inextinguível secura escoa-se. O homem é um estrangeiro para a aurora. No entanto, a caminho da vida que não pode ser ainda imaginada, há vontades que fremem, murmúrios que vão afrontar-se e crianças sãs e salvas – que descobrem.

Pintura: Narcisse-Virgile Diaz de la Peña

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A pequena amiga de Robert Walser

Numa cama está deitada uma jovem rapariga, morta. Devo confessar que é raro encontrar um quadro que me toque tão profundamente. Três a quatro alunas, companheiras de escola da falecida, estão perante o mistério, que com a sua sublime grandeza atinge as almas florescentes com um sopro frio. Estão angustiadas; não se entendem nos seus exercícios e jogos: os pais, as casas, os campos, a igreja. No entanto, decerto irão entender tudo isto no dia seguinte ou até na próxima hora, retomando as suas actividades habituais. Mas agora, despedindo-se do corpo da sua amiga, tudo o que lhes era familiar torna-se estranho, a estranheza, por outro lado, torna-se familiar. Morrer é tão grandioso e, ao mesmo tempo, tão infinitamente insignificante. É como outra coisa qualquer, como colher cerejas na época em que amadurecem ou como andar de trenó no Inverno ou como beber café. Têm os lenços à frente dos rostos, mas nenhuma chora o choro belo e macio de uma dor natural. Um enorme espanto apoderou-se delas, misturado com o esforço de entender o que não pode ser entendido, impedindo-as de chorar naturalmente. Ó, este espanto das raparigas é alto e grande como uma cumeeira, como montanhas aladas. Os vestidinhos que trazem parecem-lhes ter sido levados para bem longe. Mas elas irão senti-los de novo, a sua necessidade, o seu encanto junto à pele. Agora é como se não tivessem pele. O quarto, outrora aconchegante e animado, está agora silencioso, lúgubre. Também o quarto está morto, o relógio na parede, os móveis, contudo os objectos irão renascer da falta de sentido, de significado, readquirindo um sentido, a balança irá parecer às crianças, pacientes e bem-educadas, suportando esta hora de frieza violentamente silenciosa, de novo agradável e simbólica. A esperança ferida reencontra sempre o rumo certo.

Robert Walser, in Histórias de Imagens
Edições Cotovia

Pintura: Albert Anker, A Pequena Amiga (1862)

Histórias de Imagens

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A Ordem do Dia

Mas para se compreender melhor o que é a reunião de 20 de fevereiro, para captar bem o seu carácter de eternidade, é preciso passar a chamar estes homens pelo seu nome. Já não são Günther Quandt, Wilhelm von Opel, Gustav Krupp, August von Finck a estar ali, nesse fim de tarde de 20 de fevereiro de 1933, no palacete do presidente do Reichstag; são outros nomes que é preciso mencionar. Porque Günther Quandt é um criptónimo, dissimula algo bem diferente do homemzarrão que suja os bigodes e se mantém gentilmente no seu lugar, em volta da mesa de honra. Por detrás dele, mesmo atrás, está uma silhueta bem mais imponente, uma sombra tutelar, tão fria e impenetrável como uma estátua de pedra. Sim, sobrepujando poderosamente, feroz, anónima, a figura de Quandt, e conferindo-lhe essa rigidez de máscara, mas de uma máscara que se colasse ao rosto melhor do que a própria pele, adivinha-se acima dele: Accumulatoren-Fabrick AG, a futura Varta, que nós conhecemos, uma vez que as pessoas morais têm os seus avatares, tal como as divindades antigas assumiam diversas formas e, ao longo do tempo, incorporavam outros deuses.
É pois esse o nome autêntico de Quandt, o seu nome de demiurgo, visto que ele, Günther, não passa de um montinho de carne e osso, como o leitor e eu, e uma vez que, depois dele, os filhos e os filhos dos filhos hão de por sua vez ocupar o trono. Mas o trono, esse, permanece, enquanto o montinho de carne e osso apodrece na terra. Assim, os vinte e quatro não se chamam nem Rosterg, nem Heubel, como os seus cartões de identidade nos fazem crer. Chamam-se BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens, Allianz, Telefunken. Por estes nomes, conhecemo-los. Conhecemo-los até muito bem. Estão aí, no meio de nós. São os nossos carros, as nossas máquinas de lavar, os nossos produtos de limpeza, os nossos despertadores, o seguro da casa, a pilha do relógio. Estão aí, em toda a parte, sob a forma de coisas. O nosso quotidiano pertence-lhes. Cuidam de nós, vestem-nos, iluminam-nos, transportam-nos pelas estradas do mundo, embalam-nos. E os vinte e quatro homens presentes no palacete do presidente do Reichstag, nesse 20 de fevereiro, são apenas os seus mandatários, o clero da grande indústria; os sacerdotes de Ptah. Mantêm-se aí impassíveis, como vinte e quatro máquinas de calcular às portas do inferno.

Éric Vuillard, in A Ordem do Dia
Edição Dom Quixote

Pintura: Potentats d’ Imfirmités – Louis Soutter

A Ordem do Dia

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O tempo, nosso melhor alimento

“…O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo o nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é um pomo exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos de um artesão dia após dia; existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes da nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil dos nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia; rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com muita ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não se irritando contra a sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve por nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é; por isso, ninguém em nossa casa há de dar nunca o passo mais largo que a perna: dar o passo mais largo que a perna é o mesmo que suprimir o tempo necessário à nossa iniciativa; e ninguém em nossa casa há de colocar nunca o carro à frente dos bois: colocar o carro à frente dos bois é o mesmo que retirar a quantidade de tempo que um empreendimento exige; (…) caprichoso como uma criança, não se deve contudo retrair-se no trato do tempo, bastando que sejamos humildes e dóceis diante de sua vontade, abstendo-nos de agir quando ele exige de nós a contemplação, e só agirmos quando ele exigir de nós a ação, que o tempo sabe ser bom, o tempo é largo, o tempo é grande, o tempo é generoso, o tempo é farto, é sempre abundante em suas entregas: amaina nossas aflições, dilui a tensão dos preocupados, suspende a dor aos torturados, traz a luz aos que vivem nas trevas, o ânimo aos indiferentes, o conforto aos que se lamentam, a alegria aos homens tristes, o consolo aos desamparados, o relaxamento aos que se contorcem, a serenidade aos inquietos, o repouso aos sem sossego, a paz aos intranquilos, a umidade às almas secas; satisfaz os apetites moderados, sacia a sede aos sedentos, a fome aos famintos, dá a seiva aos que necessitam dela, é capaz ainda de distrair a todos com seus brinquedos; em tudo ele nos atende, mas as dores da nossa vontade só chegarão ao santo alívio seguindo esta lei inexorável: a obediência absoluta à soberania incontestável do tempo…”

Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica

Fotografia de Katia Chausheva

Os livros do Arnaldo

Lavoura Arcaica

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O Pobre Tolo

“Somos um sonho divino que não se condensou, por completo, dentro dos nossos limites materiais. Existe, em nós, um limbo interior; um vago sentimental e original que nos dá a faculdade mitológica de idealizar todas as coisas. (…) Se fôssemos um ser definido, seríamos então um ser perfeito, mas limitado, materializado como as pedras. Seríamos uma estátua divina, mas não poderíamos atingir a Divindade. Seríamos uma obra de arte e não vivente criatura, pois a vida é um excesso, um ímpeto para além, uma força imaterial, indefinida, a alma, a imperfeição.
A vida é uma luta entre os seus aspectos revelados e o limbo em que eles se perdem e ampliam até à suprema distância imaginável; uma luta entre a realidade e o sonho, a Carne e o Verbo.
Entre nós, o Verbo não encarnou inteiramente. Somos corpo e alma, verbo encarnado e verbo não encarnado, a matéria e o limbo, o esqueleto de pedra e um fumo que o encobre e ondula em volta dele, e dança aos ventos da loucura…
E aí tendes um pobre tolo sentimental, uma caricatura elegíaca.
Neste limbo interior, neste infinito espiritual, vive a lembrança de Deus que alimenta a nossa esperança, e transfigura esse bicho do Demónio, que anda por esses boulevards, vestido à moda ou coberto de farrapos.
Ardemos num incêndio de esperança, para que reste de nós uma lembrança, um fumo que sobe e não se apaga.
Tudo é memória: um fumo leve, em mil visagens animadas; ou denso, em formas inertes e sombrias; e, ao longe, a grande fogueira invisível que os demónios e os anjos alimentam.
Vivo, porque espero. Lembro-me, logo existo.”

Teixeira de Pascoaes, in ‘O Pobre Tolo’

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A palavra pássaro

[…] – Creio – disse certa vez – que a pétala de uma flor, ou uma minhoca encontrada no caminho, diz e contém muito mais do que todos os livros de todas as bibliotecas. Com letras e palavras não se consegue dizer nada. Às vezes, ponho-me a desenhar uma letra grega qualquer, um teta ou um ómega, e, ao virar um pouco a pena, a letra parece torcer a cauda e transforma-se num peixe, e por um segundo faz lembrar todos os ribeiros e os caudais do mundo, tudo quanto é fresco e húmido, o oceano de Homero e as águas sobre as quais São Pedro caminhou; ou então a palavra torna-se um pássaro, levanta a cauda, eriça as penas, empola, solta um estridor, esvoaça. Bem, Narciso, tu não ligas muito a essas palavras, não é? Mas digo-te uma coisa: foi com elas que Deus escreveu o mundo. […]

Narciso e Goldmund, de Hermann Hesse

 

Pintura: Spätsommer , 1977, de Jan Peter Tripp

 

Narciso e Goldmund

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Adeus e é tudo indiferente

[…] Indiferente. Também para mim tudo era indiferente nesse momento. Uma palavra bonita, clara, impressionante: indiferente. Compreendemo-nos. Ele disse que eu podia ir comer qualquer coisa com ele ao meio-dia e eu fiz um desvio e fui com ele ao Sternbräugarten beber uma cerveja e comer salsichas e pão. Ele tinha imaginado que a sua vida seria algo diferente, quando efectivamente teve de viver, disse ele, não por estas palavras, mas com este sentido. A mim tinha-me acontecido o mesmo. O bairro de Scherzhauserfeld e, no seu centro, o Karl Podlaha tinham ressuscitado. Recordámos muita coisa. Adeus e é tudo indiferente, disse ele a terminar, como se eu o tivesse dito. A minha marca especial hoje é a indiferença e a consciência da equivalência de tudo o que já foi e que é e que será. Não há valores altos e mais altos e altíssimos. Tudo isso acabou. As pessoas são como são e não se podem mudar, como os objectos que as pessoas fizeram e fazem e hão-de fazer. Na natureza não existem diferenças de valores. São sempre só pessoas com todas as suas fraquezas e com toda a sua imundície física e anímica em cada novo dia. É indiferente se alguém desespera com o seu martelo pneumático ou agarrado à sua máquina de escrever. Só as teorias é que estropiam o que afinal é tão claro, as filosofias e as ciências no seu todo, que se interpõem no caminho da clareza com os seus conhecimentos inúteis. Já quase tudo passou, o que agora ainda vem não surpreende, porque todas as possibilidades foram ponderadas. Aquele que fez tanta coisa errada e irritou e perturbou e destruiu e aniquilou e se esforçou imenso e estudou e muitas vezes se exauriu e quase se matou e se enganou e se envergonhou e de outra vez não se envergonhou há-de, no futuro, enganar-se e fazer muita coisa errada e irritar e perturbar e destruir e aniquilar e esforçar-se imenso e estudar e exaurir-se e quase se matar e continuar tudo isso até ao fim. Mas, em última análise, é tudo indiferente. As cartas são postas a descoberto, pouco a pouco. A ideia era desvendar a existência, a própria e as outras. Nós reconhecemo-nos em cada pessoa, seja ela quem for, e estamos condenados a ser cada uma dessas pessoas enquanto existirmos. Somos todos essas existências e existentes juntos e andamos à nossa procura e no fim não nos encontramos, por mais insistente que seja o nosso esforço nesse sentido. Sonhámos com a sinceridade e a clareza, mas não passámos do sonho. Muitas vezes desistimos e recomeçámos e voltaremos ainda muitas vezes a desistir e a recomeçar. Mas é tudo indiferente. O homem do bairro de Scherzhauserfeld com o seu martelo pneumático deu-me o meu mote, de que tudo é indiferente. É  a essência da natureza, de que tudo é indiferente. Adeus e é tudo indiferente, foram as suas palavras, que eu oiço reiteradamente, as suas palavras, embora as suas sejam também as minhas e embora eu próprio tenha dito muitas vezes Adeus e é tudo indiferente. Mas tinha de ser dito nessa altura. Eu já o tinha esquecido. Nós estamos condenados a uma vida, e isso significa a vida inteira, por um ou por muitos crimes, quem sabe?, que não cometemos ou que voltamos a cometer, por outros depois de nós. Não nos chamámos a nós próprios, subitamente encontrámo-nos aqui e logo nesse momento nos consideraram responsáveis. Tornámo-nos resistentes, já nada nos pode deitar abaixo, já não nos agarramos a vida, mas também não a desbaratamos, queria eu dizer, mas não o disse. Por vezes levantamos todos a cabeça e julgamos que temos de dizer a verdade ou a aparência da verdade e baixamos de novo a cabeça. E é tudo.[…]

Autobiografia, Tomas Bernhard, Sistema Solar

Pintura: Man under a Pyramid 1996 Anselm Kiefer

Autobiografia

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A Prisão de Darwish

Prison is intensity. Nobody can spend a night in it without training his throat to something like song. That is the permited method for taming the isolation and maintaining the dignity of suffering. When you hear your hoarse voice, your other self is conversing with you and whispers to you news about yourself, in a room which, however cramped it may be, is surrounded by wide space, and you embrace the world with a love of peace. While you are singing, you do not sing in order to share the night with someone else. You do not sing to measure the rhythm of time, or as a sign; you sing because the cell incites you to confide in the outsider, to reduce the totality of isolation. Fields come to you with the rustling of golden ears of grain; the sun fills your heart with the light of an orange; alpine flowers come to you, in disorder like the hair of a chaotic girl; and the aroma of cardamom comes to yo. If is as if you had never before been alert to the space and peace about you. to your failure to celebrate Nature.

www.flaneur.pt/produto/absent-presence/

 

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Robert Walser, o poeta solitário

No esboço em prosa que consagrou a Brentano, Walser pergunta: “É possível um homem que sente tanto e tão bem ser ao mesmo tempo tão pouco sentimental?” A resposta teria sido que, na vida como nos contos, há aqueles a quem a extrema pobreza e a angústia torna difícil o sentir e que por isso, como Walser numa das suas mais tristes peças de prosa, são forçados a pôr à prova a sua atrofiada capacidade de amar com substâncias ou coisas a que ninguém liga, as cinzas, uma pena, um lápis e um fósforo. Contudo, o modo como Walser lhes insufla uma alma num acto de absoluta identificação e empatia mostra que os sentimentos mais profundos são talvez os que incidem sobre as coisas mais insignificantes. “De facto”, escreve Walser sobre a cinza, “não é possível dizer sobre este objecto tão desinteressante muita coisa que não seja desinteressante, a não ser mergulhando profundamente, como, por exemplo, assim: se soprarmos as cinzas, não é pequena coisa elas não se dispersarem imediatamente. A cinza é a vera humildade, a vera insignificância e a vera inutilidade e é o que há de mais belo; ela própria está imbuída da crença de que não serve para nada. Pode alguém ser mais inconsistente, fraco e miserável do que a cinza? Não é nada fácil. Haverá coisa mais condescendente e mais tolerante do que ela? Nem por isso. A cinza não tem carácter e está muito mais longe de um qualquer tipo de madeira do que o desânimo da euforia. Onde há cinza, não há praticamente nada. Pousa o pé na cinza e nada te dirá que estás a pisar qualquer coisa”. O clima muito emotivo desta passagem, que não encontra equivalente em toda a literatura alemã do século XX, nem mesmo em Kafka, está em que, aqui, no tratamento quase acidental da cinza, da pena, do lápis e dos fósforos, o escritor, na verdade, trata do seu próprio martírio, pois as quatro coisas de que se ocupa não estão arbitrariamente associadas, antes são os instrumentos de tortura do autor, ou seja, aquilo de que necessita para organizar a sua cremação e o que resta quando o fogo já se extinguiu.

W.G. Sebald, in O Caminhante Solitário