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Pedro Tanqueiro e o “melhor romance que ninguém leu”

“Ando sempre acompanhado de um livro. Por vezes mais que um. Este que ando a ler foi-me recomendado por uma pessoa que me é muito especial. Obrigado, o livro é muito bom. Leio em vários sítios, este é apenas um dos habituais. Conforto e silêncio num recanto da minha casa.”

Stoner

Romance publicado em 1965, caído no esquecimento. Tal como o seu autor, John Williams – também ele um obscuro professor americano, de uma obscura universidade.
Passados quase 50 anos, o mesmo amor à literatura que movia a personagem principal levou a que uma escritora, Anna Gavalda, traduzisse o livro perdido. Outras edições se seguiram, em vários países da Europa. E em 2013, quando os leitores da livraria britânica Waterstones foram chamados a eleger o melhor livro do ano, escolheram uma relíquia.
Julian Barnes, Ian McEwan, Bret Easton Ellis, entre muitos outros escritores, juntaram-se ao coro e resgataram a obra, repetindo por outras palavras a síntese do jornalista Bryan Appleyard: “É o melhor romance que ninguém leu”. Porque é que um romance tão emocionalmente exigente renasce das cinzas e se torna num espontâneo sucesso comercial nas mais diferentes latitudes? A resposta está no livro. Na era da hiper comunicação, Stoner devolve-nos o sentido de intimidade, deixa-nos a sós com aquele homem tristonho, de vida apagada. Fechamos a porta, partilhamos com ele a devoção à literatura, revemo-nos nos seus fracassos; sabendo que todo o desapontamento e solidão são relativos – se tivermos um livro a que nos agarrar.

Stoner é um livro que nos surpreende pela simplicidade da sua história, dos seus personagens dos seus locais. Tudo neste livro já foi visto, já foi lido, tudo é comum. No entanto, também tudo é descrito com uma sensibilidade e lucidez imponente, que nos agarra até à última palavra.”

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Joan Margarit

Nascido em 1938, em plena Guerra Civil, em Sanaüja, uma aldeia na província de Lleida, Joan Margarit incorporou esse conflito na sua obra, que iniciou no final da década de 1950, então ainda em castelhano. Casa da Misericórdia é um exemplo marcante, com as suas referências às crianças orfãs, acolhidas pela instituição de que o livro toma o nome, aos abrigos, as fugas. Morte, separação, velhice, solidão, temas inelutáveis, a que a sua poesia não se furta.

Misteriosamente Feliz, de Joan Margarit

Elegia da Alvorada

É um poeta cinzento de um país cinzento

numa cidade cinzenta com um grande porto.

E tu procuras-te nele para raconheceres

a angústia e a névoa dos teus olhos.

Permanece na penumbra, como o rapaz

que outrora olhava a chuva atrás dos vidros:

é um poeta cinzento de um país cinzento,

ao amanhecer, numa cidade cinzenta

com um grande porto junto a um mar de Inverno.

 

O corpo cai no futuro

como um pássaro num poço.

É um poeta cinzento de um país cinzento,

já surdo para o futuro,

o futuro a que pertence este poema.

Com cores de roupa negra destingida

principia a aurora: na calçada

o vento acumulou as folhas secas,

até que, de súbito, co fúria,

as levanta como uma debandada de pássaros.

O rapaz de há muitos anos

vê surgir o sol atrás dos vidros:

é já um poeta cinzento de um país cinzento

numa cidade cinzenta com um grande porto.

 

Poema Para Um Friso

Era um desenho num papel tão fino

que o levou o vento. Da janela

mais alta até tão longe, ruas, o mar:

o tempo que não recuperarei.

Procurei-o nas praias, no Inverno,

quando mais se lamenta um desenho perdido.

Segui os caminhos de todos os ventos.

Era o desenho a lápis de uma rapariga.

Meu Deus, como o procurei.

 

Organização de Miguel Filipe Mochila

 

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Blas de Otero

Blas de Otero Muñoz (Bilbao, 15 de março de 1916 – Majadahonda(Madrid), 29 de junho de 1979) foi um poeta originário do País Basco, tendo, porém, escrito em língua castelhana, considerado um dos principais representantes da poesía social dos anos cinquenta em toda a Espanha.

Anjo Ferozmente Humano, de Blas de Otero

Ar Livre

Se há alguma coisa de que gosto, é viver.
Ver o meu corpo nas ruas,
falar contigo como um camarada,
olhar os escaparatesAnjo-Ferozmente-Humano
e, sobretudo, sorrir de longe
às árvores…

Também gosto dos camiões cinzentos
e muitíssimo mais dos elefantes.
Beijar os teus seios,
deitar-me no teu regaço e despentear-te,
engolir água do mar como cerveja
amarga, escumante.

Tudo o que seja sair
De casa, espirrar de tarde em tarde,
cuspir contra o céu das tundras
e as medalhas dos semelhantes,
sair
deste espaçoso e triste cárcere,
apressar os rios e os sóis,
sair, para o lar livre sair, para o ar.

Tradução: Miguel Filipe Mochila
Edição: Língua Mota

Parece Que Chove

Agora sim está a chover em Bilbao,
é sete de Agosto e chove como na minha infância,
delicadamente
e insistentemente, chove e o ar enche-se de eees,
de leves letras frágeis, indecisas
como aquela manhã dos teus treze anos em Barambio
quando não te atreveste a dizer a Charito que a amavas,
mas chove
e aquilo e tantas outras vicissitudes que foram caindo
sobre a tua vida como uma mansa chuva já não têm remédio,
nem deus o remedeia tal como naquela manhã em que não
chegate a decidir-te em Herrera de Pisuerga junto aos seus
seios tão frescos, chove veladamente, admiravelmente,
um pouco transversalmente,
ah esta Bilbao maçadora em que se não fosse estar a chover
nos afogaríamos todos de tédio,
fumo e beatice, mas chove contra as torres da
quinta paróquia,
e que havemos de fazer se chove
insistentemente
e, deves dizê-lo, delicadamente.

Tradução: Miguel Filipe Mochila
Edição: Língua Morta

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O Natal de Manuel António Pina

Ao Natal Chega-se Partindo

 

Quando eu era criança, o Natal entristecia-me. A desusada agitaç1932036_10208270257743698_1950333897_não dos adultos, a mãe metida na cozinha, o cheiro a fritos (as filhoses, as rabanadas, os sonhos) pela casa, as prendas, que me pareciam apenas uma rotina cabisbaixa (e porquê não poder abri-las antes da meia-noite?), o desolador menu da ceia (bacalhau!, eu que imaginava a felicidade sob a forma de um bife com batatas fritas!), tudo me fazia detestar o Natal. Só a construção do presépio me animava; com musgo e com algodão em rama imaginava campos e colinas cobertos de neve; um sinuoso caminho de serradura subia até à gruta, onde o Menino jazia deitado num ninho de pintarroxo (ainda hoje o tenho, a esse ninho); a vaca e o burro eram desproporcionados em relação ao tamanho do Menino, mas os meus pais sempre se recusaram a comprar outros; e o Rei Mago preto tinha-se partido noutro Natal e, no seu lugar, estava agora um jogador do Sporting, com bola e tudo!
Como a infância, o Natal é algo que só podemos ter quando o perdemos. Quando somos crianças, o Natal é próximo de mais, e real de mais, para ser verdadeiro. Só a memória (e a memória construímo-la como construímos um presépio: com pedaços) o torna verdade. E só a memória nos permite saber, enfim, algo essencial: que o Menino da manjedoura éramos nós.

JN, 23/12/2005

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Paisagens da China e do Japão, de Wenceslau de Moraes

“Há alguns dias, na cidade de Kobe, – poderia precisar o dia, e quase a hora, se tamanho rigorismo me exigissem, – irrompeu a Primavera. Irrompeu: não há sombra de exagero no vocábulo. Irrompeu, surgiu de um pulo, fez explosão. Neste país do Sol Nascente, onde o sol, e com ele todas as grandes forças naturais, são ainda uns selvagens – se assim posso expressar-me – uns selvagens sem freio, sem noção das conveniências, incapazes de se apresentarem de visita, de luvas e casaca, numa corte qualquer da nossa Europa: neste país do Sol Nascente, ia eu dizendo, a criação inteira apostou, parece, em oferecer em cada dia uma surpresa, toda ela exuberâncias inauditas, espalhafatos únicos, repentismos nervosos, caprichos doidos, como se reunisse em si a quinta essência da alma das crianças e a quinta essência da alma das mulheres, a gargalhada, a troça, enfim, motejadora de tudo quanto é ordem, harmonia, contemporisadora lei das transições.”

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Paisagens da China e do Japão é um livro composto por 17 crónicas literárias e contos, escritos sobre a realidade da China, particularmente de Macau, e sobre o Japão, país que Wenceslau de Moraes escolheu para passar o resto da sua vida. Uma viagem pela cultura de ambos os países, nessa altura ainda muito desconhecidos em Portugal. Todos os contos são ilustrados com gravuras, antigas litografias que o autor escolhera para ilustrar os contos e, inclusive, desenhos originais do próprio Wenceslau de Moraes.

Pintura de Shoda-Kakuyu

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A Humanidade nos Passos em Transição

A “Humanidade nos passos em transição” foi o nome que a Edite Amorim escolheu para uma conversa-debate sobre a atualidade, baseada na sua experiência num campo de refugiados na Macedónia, e em dois campos de acolhimento provisório em Berlim. Convidou, para esta partilha e reflexão, a Ana Cancela, também ela com uma experiência no mesmo campo de refugiados, e vieram ambas à livraria Flâneur, no dia 19 de Novembro’15, dispostas a partilhar e debater a Humanidade. Unidas por um desejo conjunto de partilhar, reafirmando o que fica de mais elevado quando tudo à volta parece ruir, com aqueles – e foram muitos- que se quiseram juntar ao debate.

Há vivências que devem ser partilhadas, não só porque ajudam a atribuir sentido às coisas e aos acontecimentos e porque os que ficaram precisam de ouvir os que partiram (são tantas as perguntas: Quem são aquelas pessoas? Que histórias ouviram das suas bocas? Para onde vão? Do que fogem? O que procuram?), mas também porque, como diz a Edite, “há que criar núcleos de amor, de humanidade.”

Este foi, precisamente, o centro do debate. Mais do que os aspetos concretos sobre a crise dos refugiados, a discussão focou-se no que fica de confirmação de Humanidade, com tudo, apesar de tudo. O que fica do Humano, o que se viu, sentiu, ouviu no contacto com estes “Passos em transição”, que confirma a possibilidade de esperança nessa Humanidade em que ambas, Edite e Ana, tanto confiam e defendem.

As motivações para a ida à Macedónia foram diferentes, como diferentes são os seus perfis. Psicóloga de formação, a Edite foi motivada pela curiosidade, a curiosidade pelo outro. Aqui como em qualquer parte do mundo gosta de ir ao encontro do outro, confrontando-se também consigo própria. Kapuscinski refere na obra “O Outro” que esta busca pode ser um dos caminhos para o humanismo: “Lévinas procura sempre o caminho para o outro, quer livrar-nos do jugo do egoísmo e da indiferença (…). Mostra-nos uma nova dimensão do nosso Eu, evidenciando, nomeadamente, que ninguém é uma entidade solitária, porque dentro de cada Eu está também o Outro”.

A tragicidade destes dias tem entrado no nosso quotidiano. É a História a desenrolar-se à frente dos nossos olhos. E desta vez nós podemos intervir. Estamos cá.

Foi isso que sentiu também a Ana Cancela, da área do Marketing e da Gestão, que, com uma abordagem mais jornalística, seguiu para a Macedónia depois de ter organizado uma recolha de bens a nível nacional, na expectativa de registar a chegada de tudo ao destino final.

Os seus relatos incluem as histórias de corrupção que impediram os camiões com os bens recolhidos de entrarem na Macedónia (acabaram na Croácia), que contrastam com a incrível delicadeza que viu nos gestos e palavras daqueles a quem pôde ajudar diretamente, no campo de Gevgelija.

Ana e Edite são amigas desde que têm memória da sua existência, mas no campo raramente se cruzaram. O que fazem, as rotinas que têm, os “cachecóis” que usam no dia-a-dia ali pouco importam. Importa o que são. E no fim do dia o cansaço do trabalho a responder a todas as necessidades (distribuir comida, roupa, cobertores, ajudar as pessoas a embarcar, ouvi-las…) vence qualquer pensamento, vence até a emoção.

O que e quem encontraram no campo? Homens, mulheres, crianças, bebés, famílias inteiras provenientes da Síria, do Afeganistão, da Palestina, do Iraque e de tantos outros lugares mais ou menos improváveis. Pessoas que viram cidades a ruir, amigos e familiares a desaparecer, que viveram os horrores da guerra, outras que os anteciparam e outras ainda que procuram melhores condições de vida e de trabalho, como qualquer migrante.

Edite e Ana, depois de dias intensos a sentir de dentro as histórias de quem passou, destacam uma atitude comum, nos passos de quem se cruzaram: mais importante do que aquilo de que fugiam, era aquilo de que iam à procura. Essa foi a atitude que mais viram presente; a esperança, a resiliência e a capacidade de manter firmes as perspetivas de futuro, num passado próximo tão carregado.

E que bela é essa procura por dias bons de redenção, de paz, de concretização, no fundo de tudo o que todos queremos para as nossas vidas. O “Outro” pode ser colocado como espelho de nós mesmos e nós somos o “Outro” do “Outro”, respeitando as respectivas diferenças e a liberdade de ser e de estar.

E o regresso? Como é voltar a casa? É sentir que não se quer parar, que não se pode parar. Que é urgente ir ao encontro do outro, conhecê-lo, partilhar com ele quem somos, criar empatia e aproximações. É isto que nos torna humanos. E os “passos em transição” referem-se aos passos de todos nós na busca de uma maior humanização.

Deixamos uma janela aberta ao que foi visto nesta viagem, num registo da Edite Amorim sobre esses “Passos em transição”:

 https://stepsintransition.wordpress.com/

E agora as palavras de quem esteve presente, em resposta ao “O que te levas deste encontro?”, confirmando o tanto que temos a ganhar com partilhas deste género…

“Levaram-me a viajar, a acreditar na Humanidade para lá de toda a miséria humana.” Mariana S.

“Tirando as capas que penso que me definem, estou pronto/a para me encontrar e encontrar os outros. Que venham mais conversas!” Maria L

“Sensação de humanidade e Limpeza informativa. A essência das coisas do ser humano” Miguel

“Famílias unidas sem perder a dignidade e com o sonho de poder viver uma nova vida”. Eugénia B.

“A Humanidade sempre existe” Paula A.

“O “outro” deixou de ser distante. Encontrei-o na pele da Edite e da Ana: semelhante/diferente – Nosso!” Helena G.

“Levo a palavra “contradição”: a de levar o menos de ‘bagagem’ possível para uma experiência num campo para que possamos, da forma mais isenta e sem ideias pré-concebidas interagir, dar e receber e, por outro lado é toda a nossa carga, bagagem que resulta da nossa experiência de vida que, quer queiramos quer não, influencia a forma como vamos viver uma experiência como a de que ouvi falar.” Marta M.

Fotografias de Lambros Rousodimos

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Filosofia da Música, por Vítor Guerreiro

Entre as muitas características curiosas que os seres humanos partilham está a de dedicarmos uma quantidade substancial de tempo e esforço a fazer e escutar sequências de sons sem qualquer significado convencional ou conteúdo representacional aparente. Chamamos “música” a essas sequências de som e distinguimo-las, de algum modo, daquelas que não o são. Alguma música é acompanhada de palavras cantadas mas como algo pode ser música sem conter palavras não pode ser a capacidade descritiva das palavras que explica a atenção que dedicamos, por exemplo, a uma sinfonia ou outra obra puramente instrumental. Tampouco é o fenómeno da “música pura” ou “música absoluta” uma peculiaridade ocidental.
O facto de fazermos esta distinção entre eventos sonoros, e a diversidade de comportamentos que adoptamos em virtude dessa distinção, colocam problemas filosóficos fascinantes. Eis alguns exemplos: o que faz um conjunto de sons ser música? A que realidade se refere este conceito de “música”? Mas também questões como a de saber de onde nos vem a crença de que a música é emocionalmente expressiva e o que poderia justificar essa ideia. Que relação existe entre a música e as emoções? Pode a música descrever, simbolizar ou representar as nossas “vidas emocionais”?
Que tipo de objecto, entidade ou coisa é uma obra musical? Quando assobiamos uma melodia cinco vezes, por exemplo, nenhuma dessas acções concretas pode ser identificada com a melodia, pois esta existiria mesmo que não a tivéssemos assobiado em qualquer daquelas ocasiões.
Diz-se por vezes que escutamos uma obra musical “com compreensão”. Alguém que compreende a música de uma dada tradição, contexto histórico ou autor compreende exactamente o quê? Se a música não é descritiva nem narrativa, o que há para compreender? Responder a esta pergunta supõe que tenhamos uma concepção robusta do que seja uma experiência musical e o que a distingue das outras experiências, que não o são.
Aqui listei quatro questões centrais da filosofia da música, as mesmas nas quais se centra a antologia que organizei e venho apresentar: os problemas da definição, ontologia, poder expressivo e compreensão da música. Trata-se de questões em aberto, acerca das quais muito se tem escrito sem que haja respostas definitivas ou canonicamente aceites. E isto é em parte o que as torna fascinantes, dado que o leitor que a elas chega pela primeira vez tem pela frente, não menos do que quem escreve sistematicamente sobre o assunto, o exercício desafiador mas estimulante, lúdico e prazeroso, de avaliar por si as forças e fraquezas das ideias que já se teve acerca do assunto, e imaginar modos de fazer avançar a discussão.
Vítor Guerreiro
Na próxima sexta-feira às 21h a Flâneur recebe o autor para uma conferência sobre Filosofia da Música. Estão convidados a participar.
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Segunda-feira de Outono espreitada desde um café quente em Barcelona

Sentada num café de portas e mesas de madeira, um pequeno candeeiro sobre a cabeça, iluminando o trabalho e os quadros com fotografias que acompanham o lado de cada mesa. Como numa pequena ilha de intimidade, criada pelo cheiro a café e pelo ambiente relaxado, este novo espaço no Eixample Esquerdo permite ver Barcelona a passar lá fora.
Os jovens de 20’s e 30’s que passam e entram, computadores e telefones nas mãos, línguas de todo o mundo, lenços à volta do pescoço, sorriso de juventude.
E todos os outros que, passando diante, nem pensarão em parar ou entrar: as avós do bairro, costas curvadas e braço dado com jovens sul-americanas que lhes servem de apoio aos dias; pais catalães com bebés loiros chamados “Ona” ou “Pau” vestidos de cores e de conforto; pais sul-americanos com bebés de cara redonda e olhos repuxadinhos, a quem chamam “mi niño” e “mi niña”; muitas Vespas de cores modernas, que empurram suavemente e com estilo, gente jovem para o trabalho.
É a Barcelona-cidade a acordar numa segunda feira vista de um bairro onde se vive o quotidiano sem lembrar os turistas das Ramblas, da Sagrada Família ou do Parc Güell.
Uma Barcelona que tem senhores a entregarem botijas de gás empilhadas umas nas outras, num carrinho de mão que se transporta fácil e que chama a atenção batendo com algo metálico na botija mais à mão. “Clac clac clac clac” e já se sabe que as botijas vão a passar, prontas a subirem a algum dos edifícios modernistas, de janelas altas, portadas pintadas e varandas de ferro forjado, de linhas retas.
Pedaços de Catalunha espalhados pelos cafés de esquina, nas esquinas recortadas para que a luz entre sempre mais, neste Eixample geometricamente desenhado. Cafés onde o pão com tomate se vende como tapa mais comum e onde as batatas bravas acompanham as cañas que se tomam a qualquer hora.
Barcelona continua a passar plural lá fora, enquanto neste café o oásis de gente-parecida se protege do Outono que hoje se chegou mais.
Continuam a passar as vizinhas que foram à frutaria, de carrinho de compras cheio até cima e passos sem pressa, que ainda são 12:30 e o almoço faz-se mais tarde; passam as pessoas muito tatuadas e roupas apertadas, que se riem alto e se abraçam quando se encontram; e até passa o AeroBus que transporta de e para o aeroporto quem cá veio espreitar a cidade, ou vê-la desde dentro, agarrá-la em fotos ou vivências e voltar às vidas a quilómetros de distância.
Enquanto Barcelona desfila lá fora, as mesas de madeira do café continuam a apoiar conversas em voz baixa, folhas de apontamentos solitários, cadernos de desenhos, computadores que albergam palavras. Palavras como estas, que descrevem com letras o que os olhos veem com cores.
E Barcelona passa lá fora numa segunda-feira de Outono espreitada desde um café quente.

Edite Amorim

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A Redenção de David Vann

«A tragédia traz outro sentido à vida, e não pode ser encarada apenas pelo que nos traz de depressão, mas também pelo que nos rejuvenesce»  David Vann

Durante dez anos o americano David Vann (n. 1966) lutou com o facto de o pai ter cometido suicídio quando ele tinha 13 anos, duas semanas depois de ter recusado passar algum tempo com ele numa ilha no Alasca. Com a acção a decorrer na natureza hostil do Alasca, num cenário tão aberto como asfixiante, A Ilha de Sukkwan é “uma história de redenção”. “Foi uma decisão inconsciente que me levou anos a perceber.Vejo agora claramente que o que lhe queria dizer é que teria sido suficiente eu amá-lo em vez de tentar compreendê-lo.”

Em A Ilha de Caribou, David Vann traça um retrato implacável da tragicidade da nossa condição, dos efeitos da continuada desatenção às oportunidades afectivas, do comodismo instalado nas relações humanas, das suas falsidades e dos seus ressentimentos. Neste segundo romance o escritor leva as personagens mesmo até ao limite do abismo revelando como as complexas relações de uma família se podem ir desmoronando ao longo do tempo, sem que quase ninguém se aperceba, ou se queira aperceber. Num cenário duro, de vento e de gelo, de baixios traiçoeiros, de glaciares, de rios com rápidos e de falésias comidas pela erosão, Vann vai levando as personagens até ao limite suportável. E como se não bastasse, A Ilha de Caribou tem um dos finais mais surpreendentes…

Aquário, o último livro do escritor do Alaska, leva-nos até ao coração de uma jovem corajosa e destemida, cuja busca pelo amor e a capacidade de perdoar transforma as pessoas em seu redor. Implacável e desolador, original e redentor, Aquário é uma história assombrosa de uma menina de doze anos que vive sozinha com a mãe – uma estivadora das docas locais – numa casa subsidiada próxima do aeroporto de Seattle. Todos os dias, enquanto espera na escola pela mãe, Caitlin visita o aquário local para estudar os peixes. À medida que observa as criaturas que se movem nas águas profundas, Caitlin fica imersa num outro universo.

“… e eu penso que o conto de fadas está sempre à nossa espera, que a cada momento podemos cair em florestas e lobos e vozes enganadoras e acreditar no mundo das sombras. Tudo o que tememos a ganhar forma, toda a figura ou forma que se oculta algures dentro de nós deixada à solta.”