Atraiçoaria a verdade se aqui colocasse uma lista definitiva e fiável do que ando a ler, pois sou refém de uma indisciplina que, por defeito, não consigo contrariar. Porém, na arrumação possível do caos, sublinho o que mais me tem estimulado. À cabeça, um daqueles adiamentos imperdoáveis: iniciei finalmente a leitura da Odisseia, de Homero (na tradução de Frederico Lourenço). Tendemos a esquecer aqueles que nos trouxeram até aqui, mas por vezes convém travar a marcha e impor o regresso ao princípio, sob pena de perdermos a humildade necessária ao entendimento do tempo. Para as leituras debicadas que precedem o sono, acumulo neste momento o Ensaios sobre Fotografia, de Susan Sontag, o Juro Não Dizer Nunca a Verdade, de Javier Marías, e o omnipresente Cartas a Lucílio, de Séneca (esse livro-casa). A que acrescentaria as leituras mais obedientes de Os Sete Loucos, do singularíssimo Roberto Arlt, e A Casa das Belas Adormecidas, de Yasunari Kawabata. Mas talvez o autor que mais me tem impressionado seja o Daniel Jonas. Um acaso improvável, dada a distância que nos separa na geografia literária, todavia justamente sublinhado. É um caso raro de génio. Acabo de lhe revisitar vários poemas e, a cada livro, o regresso dessa estranha certeza de interrupção de uma qualquer ordem fundamental. A sua música desafia a noção canónica; creio que a recusa, na verdade — segue paralelamente a ela, na margem. É uma espécie de voz futura que nos chega do passado (ou de voz passada que nos chega do futuro) e que, por conseguinte, nunca se deixa apanhar (e muito menos fixar). Transfigura o moderno, colocando-o num certo sentido mais à frente — num tempo a que vagamente aspiramos — através da forma que veste o ritmo e domestica a tentação de fazer tese. Ousar o paradoxo de colocar à cintura deste admirável mundo novo um espartilho à medida da mais austera tradição sem nunca perder o fôlego parece-me uma proeza assinalável.
(Fotografia de Manuel Alberto Vieira – Carlos Lobo)
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