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Manuel Alberto Vieira

Atraiçoaria a verdade se aqui colocasse uma lista definitiva e fiável do que ando a ler, pois sou refém de uma indisciplina que, por defeito, não consigo contrariar. Porém, na arrumação possível do caos, sublinho o que mais me tem estimulado. À cabeça, um daqueles adiamentos imperdoáveis: iniciei finalmente a leitura da Odisseia, de Homero (na tradução de Frederico Lourenço). Tendemos a esquecer aqueles que nos trouxeram até aqui, mas por vezes convém travar a marcha e impor o regresso ao princípio, sob pena de perdermos a humildade necessária ao entendimento do tempo. Para as leituras debicadas que precedem o sono, acumulo neste momento o Ensaios sobre Fotografia, de Susan Sontag, o Juro Não Dizer Nunca a Verdade, de Javier Marías, e o omnipresente Cartas a Lucílio, de Séneca (esse livro-casa). A que acrescentaria as leituras mais obedientes de Os Sete Loucos, do singularíssimo Roberto Arlt, e A Casa das Belas Adormecidas, de Yasunari Kawabata. Mas talvez o autor que mais me tem impressionado seja o Daniel Jonas. Um acaso improvável, dada a distância que nos separa na geografia literária, todavia justamente sublinhado. É um caso raro de génio. Acabo de lhe revisitar vários poemas e, a cada livro, o regresso dessa estranha certeza de interrupção de uma qualquer ordem fundamental. A sua música desafia a noção canónica; creio que a recusa, na verdade — segue paralelamente a ela, na margem. É uma espécie de voz futura que nos chega do passado (ou de voz passada que nos chega do futuro) e que, por conseguinte, nunca se deixa apanhar (e muito menos fixar). Transfigura o moderno, colocando-o num certo sentido mais à frente — num tempo a que vagamente aspiramos — através da forma que veste o ritmo e domestica a tentação de fazer tese. Ousar o paradoxo de colocar à cintura deste admirável mundo novo um espartilho à medida da mais austera tradição sem nunca perder o fôlego parece-me uma proeza assinalável.

(Fotografia de Manuel Alberto Vieira – Carlos Lobo)

 

Teatro Vertical

Na Presença da Ausência

Odisseia de Homero

Juro Não Dizer Nunca a Verdade

Os Sete Loucos

A Casa das Belas Adormecidas

Canícula

Oblívio

Bisonte


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Flâneur Arnaldo, “Como Se Desenha Uma Casa”?

Da casa onde vivi a minha infância recordo o fascínio que sentia cada vez que me encontrava com uma das inúmeras portas que escondiam falsos. Cinco velhos andares erguidos no centro do Porto, e entre eles, por baixo de escadas, lá estavam, sombrios, misteriosos, enormes aos olhos de uma criança. Depósito de objectos, lembranças, memórias esquecidas, empilhadas em caixas cheias de coisas vazias, anacrónicas, que se perderam, assim como nós, em algum espaço do tempo.

Quando leio Como Se Desenha Uma Casa, de Manuel António Pina, é como se voltasse a esses esconderijos, a essa parte encoberta do nosso ser. É o véu das recordações que se desprende, e o sempre desejado regresso de que nos fala Homero. Então, sinto os passos das pessoas que amamos que chegam, os passos das pessoas que amamos que partem, nas escadas, nos corredores, as portas que batem… é isso, a nostalgia, o remorso, essa mais-que-coisa que nos fala o poeta…

Manuel António Pina habita as palavras e as palavras habitam-no, por elas se tornou poema. A sua escrita animista, coerente, bela e reveladora tem o dom de transformar um perfil, um género ou número numa pessoa, conferindo-lhe verdadeira dimensão humana. E então o taxista, a peixeira, o professor, deixam de ser um género, uma profissão ou simplesmente mais um, para recuperar a importância que têm de facto, para saírem da “mudez do mundo”. Numa sociedade cada vez mais ambígua, onde as palavras perdem significado e a linguagem vive débil, precisamos de Todas as Palavras, para que, cavando no espírito, as possamos cultivar e lá cresçam, e fiquem a render como se de uma conta a prazo se tratasse.

Depois de desenhada a casa…

Pego na tesoura, e aspirando ao mesmo amor com que Pina recorta as pessoas, humanas e não humanas, também eu recortaria a minha velha casa. Primeiro as paredes, elas que tal como as margens de um rio, serviram de refúgio para que aí pudesse soçobrar, amodorrar, fazendo fé que na imobilidade das coisas não morresse nunca o lugar onde fui feliz.

“Nada no mundo aberto e andarilho poderá substituir o espaço fechado da nossa infância, onde algo aconteceu que nos tornou diferentes e que ainda perdura e que podemos resgatar quando recordarmos aquele lugar que foi a nossa casa.”                                                                                                                                                                            Julio Ramón Ribeyro

A eles:

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Dentro está a Ana e a Margarida

Arnaldo Vila Pouca, 37 anos, livreiro de férias e desempregado a dias, que pretende ser Flâneur a tempo inteiro.

Local da fotografia: Urban Cicle Café, debaixo de três rodas e com amigos por perto.

O livro do Arnaldo pode ser comprado aqui: Flâneur