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Perturbações

Todas as noites representavam a mesma ópera, e todas as noites ele ouvia distintamente as palavras e a música. Mas não dominava a língua. Ainda assim, lá estava ele todas as noites à janela, à escuta. Deste modo se apaixonou por uma das actrizes, sem sequer a ter visto. Nunca o teatro o tinha emocionado tanto como nessa ocasião; a paixão das melodias era para ele como o bater de asas de grandes pássaros sombrios, como se pudesse ver as linhas que o seu voo traçava na sua alma. Não eram paixões humanas o que ouvia, não, eram paixões que saíam voando das pessoas, como de gaiolas demasiado acanhadas e vulgares. Na sua excitação, nunca pensava nas pessoas que, do outro lado, invisíveis, davam corpo a essas paixões; quando tentava imaginá-las, logo via diante de si labaredas escuras, dimensões descomunais como corpos que crescem na escuridão ou olhos humanos que brilham como espelhos de poços muito fundos. O que ele amava nessa altura, sob o nome daquela actriz desconhecida, eram essas chamas sombrias, os olhos no escuro, o bater de asas negras.

Robert Musil, in As Perturbações do Pupilo Törless

Pintura: Louis Soutter The Sun is Blackened (Le Soleil se noircit) 1939

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Alexandre Andrade

Estou a ler um ensaio de Gérard Genette, intitulado Seuils, que se debruça sobre o paratexto, ou seja, os elementos do livro publicado que circundam, complementam e enquadram o texto propriamente dito: título, prefácio, notas de rodapé, índice, bibliografia, etc. Gosto do estilo de Genette, que consegue equilibrar humor, erudição e vontade genuína de partilhar conhecimento e pontos de vista, embora ocasionalmente se torne demasiado palavroso e coloquial para o meu gosto. Em ficção, decidi por fim lançar-me à aventura de encetar o primeiro volume de O Homem Sem Qualidades, de Musil. É uma altura da minha vida tão boa como qualquer outra para isso. Ainda é cedo para poder transmitir qualquer impressão. Para já, pouco mais se sabe do que isto: o homem sem qualidades chama-se Ulrich, mora numa vivenda e tem uma amante. Também tenho andado a ler, muito espaçadamente, a antologia completa dos contos de V.S. Pritchett, um calhamaço que exige uma certa preparação física para ser manuseado. Nos que já li, sobressai uma capacidade rara de retratar traços de carácter por meio de pequenos enredos aparentemente inócuos. Em poesia, estou a ler Azul e Vermelho, de Adriana Crespo, uma autora que tem vindo a construir uma obra singularíssima de beleza e inteligência, espalhada por alguns (demasiado raros) livros, inéditos e uma constelação de blogs. Seria bom que o reconhecimento mais amplo desta autora, que é inevitável, se situe num futuro muito próximo e não numa qualquer posteridade distante que lance sobre nós um olhar condoído por não termos sabido apreciar devidamente a excelência.

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