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Robert Walser, o poeta solitário

No esboço em prosa que consagrou a Brentano, Walser pergunta: “É possível um homem que sente tanto e tão bem ser ao mesmo tempo tão pouco sentimental?” A resposta teria sido que, na vida como nos contos, há aqueles a quem a extrema pobreza e a angústia torna difícil o sentir e que por isso, como Walser numa das suas mais tristes peças de prosa, são forçados a pôr à prova a sua atrofiada capacidade de amar com substâncias ou coisas a que ninguém liga, as cinzas, uma pena, um lápis e um fósforo. Contudo, o modo como Walser lhes insufla uma alma num acto de absoluta identificação e empatia mostra que os sentimentos mais profundos são talvez os que incidem sobre as coisas mais insignificantes. “De facto”, escreve Walser sobre a cinza, “não é possível dizer sobre este objecto tão desinteressante muita coisa que não seja desinteressante, a não ser mergulhando profundamente, como, por exemplo, assim: se soprarmos as cinzas, não é pequena coisa elas não se dispersarem imediatamente. A cinza é a vera humildade, a vera insignificância e a vera inutilidade e é o que há de mais belo; ela própria está imbuída da crença de que não serve para nada. Pode alguém ser mais inconsistente, fraco e miserável do que a cinza? Não é nada fácil. Haverá coisa mais condescendente e mais tolerante do que ela? Nem por isso. A cinza não tem carácter e está muito mais longe de um qualquer tipo de madeira do que o desânimo da euforia. Onde há cinza, não há praticamente nada. Pousa o pé na cinza e nada te dirá que estás a pisar qualquer coisa”. O clima muito emotivo desta passagem, que não encontra equivalente em toda a literatura alemã do século XX, nem mesmo em Kafka, está em que, aqui, no tratamento quase acidental da cinza, da pena, do lápis e dos fósforos, o escritor, na verdade, trata do seu próprio martírio, pois as quatro coisas de que se ocupa não estão arbitrariamente associadas, antes são os instrumentos de tortura do autor, ou seja, aquilo de que necessita para organizar a sua cremação e o que resta quando o fogo já se extinguiu.

W.G. Sebald, in O Caminhante Solitário

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Andrée Chédid

Andrée Chedid (20 de março de 1920 – 6 de fevereiro de 2011) foi uma poeta e romancista francesa de origem egípcia.

 

Terra e Poesia

A poesia não é evanescência, mas sim presença.

O vocábulo fascina o poeta. Como, através dele, descobrir a palavra? Lugar onde, libertando-se, a palavra descobre o seu pleno estio.

O poema permanecerá livre. Nunca encerraremos o seu destino no nosso.

Não damos nada ao poema que ele não nos devolva centuplicado. Julgamos construí-lo, e é ele que, secretamente, nos constrói.

Em busca de um equilíbrio para o perder de novo, o poeta não escapa à sua própria música.
Os poemas afastam-se, mas o grito permanece o mesmo.

Nunca abordaremos o jardim sem trevas. Nunca atingiremos a madrugada contínua. Melhor assim. Que seria de nós sem a sede? Sem o frágil linho do amor?

Não há saídas sem armadilhas. Cada caminho fica por decifrar. Do singular ao universal, do quotidiano ao durável, é necessário restabelecer – pedra a pedra – a passagem.

A poesia é natural. Ela é a água da nossa segunda sede.

Recusando escolher uma margem com exclusão da outra, uma das provas do poeta – mesmo que a sua água e o seu sol lhe não bastem – deveria ser essa ponte a construir.

Para ser, a poesia não espera senão o nosso olhar.

 

Voz Consonante, Traduções de Poesia de António Ramos Rosa, Edições Quasi

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Rui Knopfli

Habitante das escassas memórias ou testemunhos daqueles que com ele conviveram, do retrato tremido que nos chega de Rui Knopfli percebe-se essa “figura prematuramente frágil”, onde a ira se apaziguou pelo desgaste. É difícil dizer exactamente onde, mas o mesmo banco de pedra que um dia ergueu nos versos, ainda lá está, sujeito à vaga inclinação das lembranças. E nele o poeta, “pendurado num eterno cigarro”, fazendo do castigo um gosto, ainda que lhe pese a própria voz. E se o acento lírico não cedeu à ferrugem, em consequência da sua “linguagem castigada com desvelo de amante”, transparece dolorosamente “uma mágoa de naufrágios, e derrotas cruéis, que impõem o exílio do espaço habitado e bem amado”.

Diogo Vaz Pinto
https://ionline.sapo.pt/574191

DESPEDIDA

Tudo entre nós foi dito.
Estamos cansados e tristes
neste outono de folhas pairando
e caindo.
Entre nós as palavras colocam um mundo de
silêncio e vazio estéril.
Os próprios sonhos se encheram de neblinas
e o tempo os amarelece.
Outono decisivo de folhas secas
e bancos abandonados de cimento frio
onde não cantam aves
e o vento desce em brandos rodopios.
Apenas uma vaga angústia presente,
uma saudade sem recomeços,
a lembrança tépida a gelar como
veios de mármore.
Tudo entre nós foi dito,
olhamos o apodrecer do parque,
o vento, o crepitar leve das folhas
e, sem ressentimentos, dizemos adeus.

Rui Knopfli, in Uso Particular, Do Lado Esquerdo – http://www.flaneur.pt/produto/uso-particular/

FIM DE TARDE NO CAFÉ

Na tarde cor de azebre
falávamos de coisas amargas.
Ali, na mesa triste do café
com moscas adejando
sobre restos de açúcar
e um copo de água
morna de esquecida,
falávamos da amargura das coisas,
entre rostos graníticos e enxovalhados,
entre estranhos e estranhos
de estranhos e os que,
nada tendo de estranhos,
cuidam de cuidar
o que se passa entre estranhos.
Na tarde comprida e silenciosa
tecíamos gestos inúteis
e palavras entre dentes,
mergulhados na paisagem geométrica
do café. Do café tão cheio de gente
e fumo e moscas e caras tristes
e afinal tão profundamente,
tão desesperadamente vazio.

Rui Knopfli, in Uso Particular, Do Lado Esquerdo – http://www.flaneur.pt/produto/uso-particular/
O CAMPO

Saio para o campo. O campo
aqui não é o campo, mas a savana
eriçada de micaias e capim
feio e desigual. Habitantes
do seu mundo, os negros ignoram-me,
empenhados em suas tarefas quotidianas.
Olho para as coisas abandonadas,
latas escuras de ferrugem, lonas
pardas de pneus, ferros
retorcidos sem jeito. Entre isso
o capim espreita, descolorido, espigado
e hirsuto. Nada me sugere a face
aveludada de uma paisagem pastoril,
rosto tranquilo de criança sonhando.
Mas eles estão no seu mundo,
e eu passeio no campo.

Rui Knopfli, in Uso Particular, Do Lado Esquerdo – http://www.flaneur.pt/produto/uso-particular/

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Diário Do Dia Seguinte – Francesca Woodman

“Vida e morte são um rio, com nascente e foz. As margens, ao longo de todo o percurso, mais ou menos alimentadas de acontecimentos, obras, experiências. Mas não são elas o mais importante. Interessa, isso sim, a água que corre, o fio de um corpo que o aperto das margens pode levar à rotura ou deixar fluir livremente. No primeiro caso, o excesso de corrente provoca a sensação de que esse corpo não suporta o caudal. E decide, ele mesmo, suspender um dia a sua jornada, entrar no mar aberto e sem fim, para lá da via estreita em que o seu curso/corpo de água viveu.”

João Barrento, Como Um Hiato Na Respiração, Edições

Untitled 1975-80 Francesca Woodman 1958-1981
From Angel Series, Roma, September 1977 1977 Francesca Woodman 1958-1981

“O que leva uma mulher jovem e bela a dar esse salto aos vinte e dois anos? As fotografias dirão mais do que as motivações exteriores. Por exemplo: a obsessão da extinção definitiva, depois de dez anos a ensaiar a auto-extinção do corpo pela fotografia – do velamento ao desvelamento do corpo, à sua dissolução em imagens que dão a ver a vertigem do desaparecimento parcial e progressivo de um corpo que oscila entre a plenitude da exposição total e a vontade de discretamente se ir retirando. Não se trata, por isso, de «auto-retratos». O que vemos são séries de representações encenadas de um corpo de que a própria já se distanciou, objectivando-o.”

“A Woodman, por escolha e vocação (logo a partir dos treze anos) destinada a ver-se e rever-se no espelho do “olho da câmara” fotográfica, cedeu, primeiro, ao fascínio do espelho, depois, ao salto mortal para o vazio que este já representava: da profundidade de campo do reflexo do corpo no espelho para a vertigem do abismo.”

João Barrento, Como Um Hiato Na Respiração, Edições Averno

The Unknown Friend – Francesca Woodman 1958-1981
Untitled – Francesca Woodman 1958-1981

Como Um Hiato Na Respiração – Diário Do Dia Seguinte

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Como Um Hiato Na Respiração – João Barrento

A relação com a morte é de luta. Luta pelo prazer de sentir supremacia sobre ela, de saber exactamente qual a medida do (nosso) tempo. “O tempo é um simples modo de pensar” (Spinoza).
 
O tempo – essa substância estranha e implacável que sustenta a tirania de um mundo que absorve toda a energia mental. Mas deixa sempre aberta uma nesga através da qual a imaginação vê e recria, dia a dia, hora a hora. Ampliam-se os sentidos de ver na ausência. Até ao limite em que damos conta de que a Grande Ausente está sempre ali. Ela é, no mundo, a Grande Desconhecida que nos acompanha. E a quem podemos trocar as voltas.
 
Como Um Hiato Na Respiração, João Barrento, Averno
 
Imagem: Saudek
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Isabelle Eberhardt, a escritora do deserto

É a escritora do deserto, a mulher-revolução para quem a escrita era o destino e o único verdadeiro consolo. Isabelle Eberhardt nasceu na Suiça em 1877, descendente de russos que se fixaram na região de Genebra. Ela e a sua mãe, sedentas de uma liberdade que não encontravam na Europa, mudaram-se para Argel, terra que sentiram logo como sua. Aqui Isabelle viveu uma vida aventurosa, usando muitas vezes o vestuário de um beduíno, o que lhe permitia ter uma liberdade de movimentos só acessível aos homens. Mudou de nome, aprendeu árabe e converteu-se ao islamismo. No deserto foi-se tornando num ser livre, vivendo-o de forma apaixonada, entregando-se ao amor, ao contacto com a natureza, a tudo o que a atraía. Os seus contos publicados em Portugal pela Sistema Solar – “Histórias da Areia” – são um espelho desta forma de vida, uma belíssima homenagem ao deserto onde ela pôde “ser”, cantando as suas cores, as suas luzes, as suas pessoas, a sua solidão, o seu fogo.

“Não sou política nem agente de nenhum partido, pois acho que todos de igual forma se enganam. Sou apenas uma extravagante, uma sonhadora com o desejo de viver longe do mundo, de viver uma vida livre e nómada para contar o que vê e à frente do triste esplendor do Sara conhecer, talvez, o melancólico e enfeitiçado estremecimento.” Escreveu Isabelle num diário.

Na apresentação do livro Aníbal Fernandes escreveu: «As mulheres de Isabelle Eberhardt sofrem com um desejo de liberdade no amor que a cultura islâmica proíbe, vivem amores nómadas dramáticos quando não transcendidos pela fé; os seus homens europeus sofrem o feitiço oculto no infinito das dunas e na solidão reveladora do “outro”, místico e esotérico, transcendido com o esplendor magnífico dos elementos, vivem embriagados por um amor que opõe o Oriente e o Ocidente, e por ambos reprovado. Muitos traços destas personagens masculinas e femininas podem ser-lhe atribuídos, podem ser consideradas habitantes dos painéis de uma fragmentada e romanceada autobiografia raras vezes decidida a assumir-se com um explícito “eu”. Isabelle Eberhardt, com uma prosa generosamente adjectivada que o calor do seu olhar exige, apaixonada por ruídos, cheiros, cores, sabores, ainda assim não deixa de fazer pesar nesta festa e nesta imemorial beleza uma presença de morte. Da morte que nunca a assustou, a benfazeja, a que inspira aos muçulmanos esta saudação: “Faça-te Deus morrer jovem.” Ela própria reconhece-o nesta frase: “A morte sempre me surgiu com a forma atraente da sua imensa melancolia.” […]“Bebia de mais”, diz Robert Randau. “Era a única coisa que contrastava com a sua profunda aceitação da fé muçulmana. Sim, tinha a religiosidade intensa dos místicos e dos mártires. Vivia como um homem, como um rapaz, porque bem mais parecia rapaz do que rapariga. Mas era, com o seu ar de hermafrodita, apaixonada e sensual embora diferente de uma mulher. Ainda por cima com o peito completamente plano. Tinha pequenas vaidades, embora bem mais fossem as de um árabe elegante. Trazia as belas mãos sempre enfeitadas com henna, a roupa sempre imaculada, e quando tinha dinheiro punha desses perfumes muito intensos que os árabes adoram.”»

Não percam a leitura deste maravilhoso livro: http://www.flaneur.pt/produto/historias-da-areia/

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Carl Sandburg

A Grade

Agora, a mansão à beira do lago já estáCarl_Sandburg
concluída, e os trabalhadores estão
começando a grade.
São barras de ferro com pontas de aço, capazes
de tirar a vida de qualquer um que se
arrisque sobre elas.
Como grade, é uma obra-prima e impedirá a
entrada de todos os famintos e vagabundos
e de todas as crianças vadias à procura de
um lugar para brincar.
Entre as barras e sobre as pontas de aço nada
passará, exceto a Morte, a Chuva e o Dia de
Amanhã.

Carl Sandburg
Tradução de Alexandre O’Neill

Rápido

Viajo de rápido, num dos melhores comboios do país.
Lançados através da pradaria, da névoa azul, no ar escuro,
correm quinze carruagens com mil viajantes.
Todas estas carruagens serão, um dia, montes de ferrugem;
homens e mulheres que riem
no vagão-restaurante, nas carruagens-camas, hão-de acabar em pó.
No salão dos fumadores pergunto a um homem qual o seu destino.
«Omaha», responde.

Carl Sandburg
Tradução de Alexandre O’Neill

Sopa

Vi um homem famoso comer sopa.
Vi que levava à boca o gorduroso caldo
com uma colher
Todos os dias o seu nome aparecia nos jornais
em grandes parangonas
e milhares de pessoas era dele que falavam.
Mas quando o vi,
estava sentado, com o queixo enfiado no prato,
e levava a sopa à boca
Com uma colher.

Antologia Poética de Carl Sandburg – FLÂNEUR (flaneur.pt)

Carl Sandburg
Tradução de Alexandre O’Neill

Publicado em

Os livros do Arnaldo

Publicado em

Os livros da Cátia