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Luís, Félix e Afonso Cruz

“Há dois livros do Afonso Cruz na minha lista de livros favoritos, este é um deles. Tenho-o sempre na mesinha da sala para eu e as pessoas da minha vida folhearmos. É um refúgio que sabe bem pegar e ler uma ou outra parte novamente. Humanidade, ingenuidade, ironia e imaginação em formato de um diário de uma menina que começou a ser escrito num dia 30 de Fevereiro. Nele, leio muito mais que as palavras escritas, leio o sol de Primavera da minha infância, leio a imaginação infantil que ainda tenho, leio também o lado bonito dos dias. O dia ao que mais volto é o 1 de Maio, que me diz “Todos os dias faço coisas estranhas, pois tenho medo do Instituto das Pessoas Normais.”, folheio-o mais um pouco, cheiro-o e pouso-o na mesinha. Foi-me oferecido no dia que, por façanha do acaso, comentei que este livro não se compra, mas que se recebe de presente. Não me lembro o dia ao certo, mas deve ter sido dia 30 de Fevereiro.”
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Luís Félix, livreiro, escultor e designer (Ignoto – https://www.facebook.com/ignotodesign) e Félix, gato.
Local da fotografia: Casa dos Félix-Branco, um dos mais bonitos sítios do Porto.
O livro do Luís pode ser comprado aqui: Flâneur
 
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Mi Buenos Aires Querido

«…pienso que nunca me he alejado mucho de ese libro; siento que todos mis otros trabajos sólo han sido desarrollo de los temas que en él toqué por primera vez; siento que toda mi vida ha transcurrido volviendo a escribir ese único libro».
Jorge Luis Borges , sobre O Fervor de Buenos Aires

Jorge Luis Borges.

Editado pela Quetzal, o primeiro volume de poesia de Jorge Luis Borges reúne os livros O Fervor de Buenos Aires (1923), Lua Defronte (1925) e Caderno de San Martín (1929). Escritos já após o seu regresso à Argentina em 1921, depois de uma uma passagem pelo velho continente, a poesia de Borges desvela os contornos de uma cidade reencontrada.
Jorge Luis Borges encanta-nos com a elegância, harmonia e  precisão  com que desenha a geografia poética de Buenos Aires. ‘Lo marginal es lo más bello’, diz-nos, e por isso a sua poesia respira as paisagens urbanas não contaminadas pelo verbalismo: os pátio, as casas, os cafés, os arrabaldes, os ritmos da natureza, os lentos entardeceres, o ocaso, a claridade…
Mas a poesia de Borges transcende o quotidiano, revela já as preocupações metafísicas e humanas do escritor argentino. É o princípio de um caminho filosófico que, sem renunciar a Schopenhauer, a Kant, a Berkeley e a Hume, revela já a sua identidade.
Percorrer as paisagens de Buenos Aires pelos versos do poeta que a eternizou, conhecer os seus caminhos esquecidos e as memórias de quem já não os pisa, é também confundir o tempo, esse que não volta nem tropeça como nos diz Francisco Quevedo, virar-lhe as costas e caminhar, como um rio que escorre no sentido da nascente.

Três poemas escolhidos da Obra Poética de Jorge Luis Borges

O Regresso

No fim dos anos do desterro
voltei à casa da minha infância
e contudo é-me estranho o seu espaço.
As minhas mãos tocaram nas árvores
como quem acarinha alguém que dorme
e repeti velhos caminhos
como se recuperasse um verso esquecido
e vi na tarde cada vez mais límpida
a frágil lua nova
abandonada ao amparo sombrio
da palmeira e das suas altas folhas,
como o pássaro ao ninho.

Que multidão de céus
abarcará o pátio entre os seus muros,
que poentes heroicos
militarão no abismo da rua
e quantas quebradiças luas novas
infundirão ternura a este jardim
antes que a casa volte a conhecer-me
e seja outra vez um hábito!

Poema retirado de Fervor de Buenos Aires (1923)

O Sul

De um de teus pátios ter olhado
as antigas estrelas,
do banco da sombra
ter olhado
essas luzes dispersas
que minha ignorância não aprendeu a nomear
nem a ordenar em constelações,
ter sentido o círculo da água
na secreta cisterna,
o odor do jasmim e da madressilva,
o silêncio do pássaro adormecido,
o arco do saguão, a humidade
essas coisas, acaso, são o poema.

Poema retirado de Fervor de Buenos Aires (1923)

A Minha Vida Inteira

De novo aqui, com os lábios memoráveis, único e semelhante a vós.
Persisti na aproximação da ventura e na intimidade da pena.
Atravessei o mar.
Conheci muitas terras; vi uma mulher e dois ou três homens.
Amei uma menina altiva e branca e de uma hispânica seriedade.
Vi um arrabalde infinito onde se cumpre uma insaciada imortalidade de poentes.
Saboreei numerosas palavras.
Creio profundamente que isso é tudo e que não verei nem executarei coisas novas.
Creio que as minhas jornadas e as minhas noites se igualam em pobreza e riqueza às de Deus e às de todos os homens.

Poema retirado de Lua Defronte (1925)

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Paulo Ponte e Voltaire

“Este é um livro sobre a tolerância e sobre a inteligência ou até mesmo a sabedoria. Há uma relação simbiótica entre elas. O Tratado sobre a Tolerância, escrito no século XVIII, tem por base um acontecimento real ocorrido em Toulouse: Jean Calas, protestante, foi injustamente acusado de ter assassinado o seu próprio filho por, alegadamente, ter decidido converter-se ao catolicismo. Calas foi julgado, condenado e executado num ambiente de grande exaltação popular, que chocou Voltaire, um dos maiores representantes do espírito do Iluminismo. Mas este é apenas o ponto de partida para a defesa de um valor maior universal: a tolerância em relação às ideias, formas de vida, actos e convicções dos outros. Isto não é mais do que a fraternidade, tão almejada ainda nos dias de hoje.

A leitura deste livro tem constituído uma óptima experiência, havendo uma identificação entre os meus valores e os valores aqui defendidos: a tolerância, que só existe com a sabedoria, por oposição ao fanatismo que nasce da ignorância, caminho para a liberdade e autonomia individual.”

Paulo Ponte, a ler “O Tratado sobre a Tolerância” de Voltaire (Relógio d’Água) na esplanada da Casa Agrícola, um lugar que é para si uma casa.

O livro do Paulo pode ser comprado aqui: Flâneur

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Os Velhos, Hélia Correia

Diz-se que há-de vir
uma era justa e boa
em que o valor da pessoa
se mantém quando envelhece.
Está no trabalho que fez.
Para conseguir uma coisa como esta
dava o sangue que me resta.
E era como se tivesse
nascido mais uma vez.

Deram-nos este banco de avenida
onde a sombra nos dói e a tarde gela
e daqui vemos nós passar a vida
Sem que a vida nos sinta perto dela.

Assim nos atiraram para fora
das coisas que ajudámos a fazer.
Ai, como o sol aquece pouco agora.
Ai, muito custa à noite adormecer.

Fomos pedreiros, varredores, ardinas
fizemos casas, cultivámos terras,
criámos gado, entrámos pelas minas,
demos os filhos para as vossas guerras.

Demos as filhas para vos servir,
cortámos lenha para a vossa fogueira.
E o tempo a ir-se, e a gente a pressentir
que vos demos sem querer a vida inteira.

E ainda é sangue o que nas veias corre.
Ainda é raiva o que nos dobra a mão.
Ainda ecoa um sonho que não morre
no nosso velho e atento coração.

Hélia Correia 

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Vítor Teves entre a arte e a poesia com Mirleos

“O meu hábito de anotar a data nos poemas que vou lendo, diz-me que li “Mirleos” entre os dias 10 e 20 de Abril, mas tenho regressado ao livro, mais umas quantas vezes, desde que o comprei. Quanto mais leio João Miguel Fernandes Jorge mais gosto e mais fico intrigado com a sua poesia. Descobri-o pelos meus 22 anos e trouxe-o comigo quando vim estudar para o Porto História de Arte. “O regresso dos remadores” (1982) foi a minha companhia nas duas horas de avião entre Ponta Delgada e o Porto. O que me prendeu na poesia de João Miguel Fernandes Jorge foi a ligação direta com a Arte, nunca tinha lido nenhum poema, até à data, com o título “Richard Long” ou “Dan Flavin”. Ninguém ao meu redor conhecia Dan Flavin em 2005, quer em S.Miguel, quer no Porto, mas alguém havia já escrito em 1982 um poema a Dan Flavin: João Miguel Fernandes Jorge. Tenho muitas reticências em comentar a poesia de João Miguel Fernandes Jorge, porque os 7 ou 8 livros que li ainda estão longe da dimensão de toda a poesia do poeta e porque creio que a complexidade, beleza, conteúdo, dimensão poética, pertinência, ultrapassa qualquer pequeno comentário que eu possa fazer. Contudo, creio que JMFJ, tal como Baudelaire, entende que uma obra de arte é mais merecedora de um belo poema do que um texto de extensa crítica de arte, sempre prospensa a “explicar tudo” (nas palavras de Baudelaire). JMFJ dá-nos novas leituras às obras de arte criando uma nova dimensão, quase que criando um universo paralelo à crítica de arte formalista, tão útil e tão desinteressante ao mesmo tempo. Cria com “Mirleos” uma condensação de tempo extremamente interessante, uma espécie de “museu imaginário” que tem por base um lugar concreto (Coimbra). JMFJ parece ir além do seu já famoso livro “Museu das Janelas verdes”(2001), não estamos apenas perante obras de arte, mas perante “admiráveis ruínas” (“Criptopórtico”). Esta condensação de tempo é claramente visível no uso da linguagem, ora tão simples, fluída, contemporânea, ora tão arcaica (Português antigo ou latim). Mas engane-se quem pensar que a poesia de JMFJ se reduz à máxima “Ut Pictura Poesis”. Vejo a poesia de JMFJ como “Uma vida à minha frente”, talvez por pensar que no meu antigo caminho para a biblioteca da Ribeira Grande, já me tenha cruzado, sem saber, com João Miguel Fernando Jorge, entre o café Central e a rua do Conde Jácome Correia na Ribeira Grande. Uma paixão em crescendo.”

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Local da Fotografia: Café Candelabro, Porto

O livro do Vítor pode ser comprado aqui: Flâneur

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Vir ao Mundo

Vir ao Mundo… Um livro que se desdobra e revela como se vai desdobrando e revelando a vida. É da vida que este livro trata. É ela que está lá dentro. A minha, a vossa, a das nossas pessoas. É nelas, nos seus abraços, nos seus ensinamentos e nos seus sorrisos que pensamos quando tocamos neste livro, ou melhor, quando este livro nos toca.

A vida apresenta-se inicialmente a preto e branco, mas com flores que guardam surpresas, mistérios, alegrias, tristezas, tesouros… Cabe-nos tocá-las, abri-las e descobrir-lhes as cores. Ou não. Como na vida, afinal.

Vir ao Mundo de Emma Giuliani é editado em Portugal pela Edicare e foi vencedor da menção do prémio Opera Prima Bologna 2014.

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Hernán Rivera Letelier, o mineiro-escritor

“desde ese día (quando em 1994 é premiado pelo Conselho Nacional do Livro e da Leitura do Chile) la vida me dio una vuelta de carnero. Me he convertido en el hombre más feliz del mundo. Hago lo que me gusta, vivo de eso y lo gozo. No he cambiado mi forma de vivir ni mis amigos, pero me siento más seguro de mí mismo, ya que no tengo que preocuparme de que no voy a tener pan para mis hijos mañana”.

Vivo há 64 anos Hernán Rivera Letelier, “mineiro-escritor por oposição a escritor-mineiro”, nasceu em Talca (Chile). Foi a ler e a escrever poesia enquanto trabalhava nas explorações de salitre do deserto costeiro de Atacama que o escritor chileno sentiu a necessidade de “devolver a memória da pampa a todos os que a quiseram esquecer”. Começa por escrever contos e poemas, mas é o romance o género literário que o torna um dos escritores mais importantes da literatura sul-americana. Influenciado pelo realismo mágico e pela experiência como mineiro, Letelier, segundo as suas palavras, sonha ser a mistura do mágico de Rulfo, do maravilhoso de García Márquez, do lúdico de Cortázar e da inteligência de Borges.

São cinco os livros traduzidos para português do autor Talquino: A Rainha Isabel Cantava Rancheras (Quetzal); Miragem de Amor com Banda de Música (Quetzal); Os Comboios Vão Para o Purgatório (Ulisseia); A Contadora de Filmes (Presença); A Arte da Ressurreição (Alfaguara); Comum a todos: a geografia única de Letelier e a sua prosa carregada de humor e surrealismo que encanta a Flâneur.

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A Rainha Isabel Cantava Rancheras é uma das obras literárias da narrativa chilena que mais sucesso obteve. Isabel é a prostituta mais famosa de todo o deserto, a mais desejada, a soberana absoluta das noites de Atacama. Retrato da vida dura e solitária de quem trabalha nas minas de salitre, dos bordéis e prostitutas. “Son mujeres que amo, porque si ser prostituta ya es fuerte, serlo en el desierto raya en lo heroico”.

Em Miragem de Amor com Banda de Música, Letelier faz desfilar a vida e os casos dos habitantes de uma povoação perdida em plena pampa. Uma bizarra história de amor entre Bello Sandalio, boémio trompetista da banda del Litro e Golondrina del Rosario, pianista e casta senhora de 29 anos. Sixto Pastor Alzamara é o barbeiro anarquista que toma a seu cargo a eliminação física do ditador Presidente da República.

Os Comboios Vão Para o Purgatório recria um mundo ora divertido e exótico, ora melancólico e romântico, do comboio que atravessa o deserto de Atacama durante a idade de ouro do salitre. São quatro dias e quatro noites de uma viagem que não eleva ao paraíso nem condena ao inferno, mas conduz ao espaço intermédio onde brota a vida e as grandes histórias.

A Contadora de Filmes narra a história de María Margarita, una menina com uma capacidade invulgar de contar histórias. É na simplicidade desta  “fazedora de ilusões” que a pobreza, a solidão e o peso do trabalho no inóspito deserto chileno, encontra o lugar ideal para sonhar. Hernán Rivera Letelier narra a história mágica dos cinemas das pampas, nos seus períodos de esplendor e decadência.

A Arte da Ressurreição, prémio alfaguara em 2010, é a história de Domingo Zárate Vega, o mesmo Cristo de Elfi de Os Comboios Vão Para o Purgatório, que graças a uma visão descobre ser a reencarnação de Jesus Cristo. Sabendo da existência de uma devota prostituta chamada Magalena parte a procurá-la, para juntos anunciarem a notícia eminente do fim do mundo. Personagens grotescas, sermões incendiários e milagres inacreditáveis compõem o maravilhoso tríptico narrado por Hernán Rivera Letelier.

Hernán Rivera Letelier é um dos preferidos na Flâneur.

Da terra árida das pampas chilenas extrai o mineiro as palavras, que, diluídas na sua paleta de memórias, desenham imagens únicas, de sonho, fantasia, desejo e miséria. São contornos de caminhos que se apagaram, outrora enclaves esquivos de vida pulsante, narrados como quem constrói uma imagem, um cenário onírico, habitado por personagens e memórias desfilantes, que à boa maneira de Fellini, parecem desaparecer, assim como se dobra uma tela pintada.

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Afonso Cruz, para onde vão os guarda-chuvas?

Em jeito de trocadilho com o título de um livro seu, Afonso Cruz é o exemplo de como os pássaros dos poemas e dos livros voam mais alto. Voam alto, avistando outros lugares, seres humanos e não humanos, indo ao encontro do mundo, que devia estar livre de gaiolas várias, de todas elas. Afonso Cruz viveu em mais de sessenta países e a sua literatura é fruto do que colheu em cada viagem. E à experiência junta-se a criatividade, o dom da efabulação e do recurso à metáfora, fazendo-nos acreditar que o pássaro que canta na sua cabeça se chama imaginação (Manuel António Pina).

Escritor, ilustrador, músico, fabricante de cerveja, filósofo… Afonso faz tudo o que gosta. E que grande exemplo é para todos esta bonita forma de vida. Como os grandes sábios, Afonso sabe que mais importante do que responder é saber perguntar e que mais importante do que acumular conhecimentos é compreender e relacionar conceitos, ideias, valores. Só desenvolvendo a empatia e a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro é que é possível viver em paz.

Estes valores e o homem que é parecem espelhar-se em cada livro, onde a invenção, a beleza da palavra e da narrativa convivem com a ética, a compreensão e o perdão. Uma das personagens da sua grande obra – “Para onde vão os guarda chuvas” (Alfaguara) -, o muçulmano Fazal Elahi, vê o filho ser assassinado por um soldado americano. À dor da perda junta-se o poder destruidor do ódio. Para não se deixar corromper por ele, Elahi decide adoptar uma criança americana. Somos humanos, demasiado humanos e se parece ser verdade que “o Mal existe em muitos mais lugares do que o Bem”, cabe-nos individualmente contribuir para o equilíbrio da balança.

E para onde vão os guarda-chuvas? Para onde vão as nossas brincadeiras de infância, para onde vão as nossas pessoas quando deixamos de as ver? Afonso diz não saber de onde vêm os guarda-chuvas, nem para onde vão. “Esses são os grandes mistérios da nossa existência, muito difíceis de compreender, independentemente de sermos ateus ou crentes. A morte continua a ser um mistério, mesmo que para algumas pessoas seja um nada absoluto. É muito difícil acreditar em coisas absolutas no Universo e esta é uma delas. Além de que há outra coisa estranha: como é que existe um tempo finito se existir eternidade? (…) O facto de sentirmos o tempo e de existirmos deveria querer dizer que o tempo não é eterno, não há eternidade. Mas nesse caso também seria muito complicado explicar isso, porque precisávamos de um princípio e de um fim. O mundo existe porquê? Porque não existe o Nada e existe o Universo?”, declarou em entrevista a Ana Sousa Dias para a revista Ler.

Afonso é um escritor da condição humana e também da contradição humana. E até parece que a primeira se faz da segunda. Escreveu o autor que “a vida descreve-se pela contradição do sobreiro: o jovem não tem paciência para esperar meio século para que a árvore cresça e seja adulta. Por isso, não a planta. Quando chega a velho e, finalmente, tem paciência para esperar, planta-a, mas já não tem tempo para a ver crescer” (Enciclopédia da Estória Univeral – Recolha de Alexandria [Alfaguara]).

A literatura é uma luz na escuridão, poetiza o mundo, em oposição à profanização, à liquidez. Faz-nos conhecer melhor o outro e faz-nos debruçar para dentro da grande paisagem que é a nossa essência. No Livro do Ano (Alfaguara), Afonso escreve que “para aquecer o corpo, o melhor é uma lareira. Mas, para aquecer a parte de dentro do corpo o melhor é ler”. Ler Afonso Cruz, a sua boa literatura com um coração dentro.

Fotografia: Vitorino Coragem – http://vitorinocoragem.com/

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Fátima Silva encontra Tom Waits e Bukowski

“Gosto de ler na rua. E gosto de ler em cafés.
Gosto do Tom Waits. E gosto do Bukowski.
Redescobri o amor pelo Tom Waits ao prestar atenção à letra da “Christmas Card From a Hooker in Minneapolis”. É de uma escuridão e de uma marginalidade que me partem o coração.
Há uma tira do Charlie Brown que descreve na perfeição o que sinto:

“This song always depresses me
It brings back such sad memories… You know what I mean?
I’ve never heard another song that depresses me the way this one does…
Play it again, will you?”

Descobri a genialidade do Bukowski ao procurar saber mais sobre esta canção.
Descobri que foi a maior inspiração do Tom Waits nestas letras que, à imagem dos  seus poemas e prosa, enaltecem quem vive à margem.
Pulp tem detectives privados, prostitutas, gangsters, corridas de cavalos, apostas, whiskey, rixas em bares, livrarias marginais, poetas mortos, carros americanos. Hollywood dos anos 90.
E tem um humor muito próprio e muito negro que me faz rir às gargalhadas:
“De repente, estava perdido, comecei a olhar-lhe fixamente para as pernas. Sempre fui um gajo de pernas. Foi a primeira coisa que vi assim que nasci. Embora nessa altura estivesse a tentar sair. Desde então, tenho-me empenhado na direcção contrária e com uma sorte de cão.”

Ler o Pulp, a par de ouvir a “Christmas Card from a Hooker in Minneapolis”, faz-me viajar até uma América negra, da qual, na verdade, não sei nada. E, incrivelmente, faz-me sentir imensamente ligada à vida destas prostitutas e detectives privados com quem estou a construir uma relação de grande intimidade. Faz-me sentir as suas dores, as suas mágoas, os seus pensamentos mais negros. Os seus desesperos e as suas vontades.

Este foi o último livro do Bukowski. E para mim, o primeiro.
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Fátima Silva, designer, a ler na Praça Carlos Alberto, sítio de passagem e de paragem da sua flânerie pelo amado Porto.
O livro da Fátima pode ser comprado aqui: Flâneur
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Flâneur Arnaldo, “Como Se Desenha Uma Casa”?

Da casa onde vivi a minha infância recordo o fascínio que sentia cada vez que me encontrava com uma das inúmeras portas que escondiam falsos. Cinco velhos andares erguidos no centro do Porto, e entre eles, por baixo de escadas, lá estavam, sombrios, misteriosos, enormes aos olhos de uma criança. Depósito de objectos, lembranças, memórias esquecidas, empilhadas em caixas cheias de coisas vazias, anacrónicas, que se perderam, assim como nós, em algum espaço do tempo.

Quando leio Como Se Desenha Uma Casa, de Manuel António Pina, é como se voltasse a esses esconderijos, a essa parte encoberta do nosso ser. É o véu das recordações que se desprende, e o sempre desejado regresso de que nos fala Homero. Então, sinto os passos das pessoas que amamos que chegam, os passos das pessoas que amamos que partem, nas escadas, nos corredores, as portas que batem… é isso, a nostalgia, o remorso, essa mais-que-coisa que nos fala o poeta…

Manuel António Pina habita as palavras e as palavras habitam-no, por elas se tornou poema. A sua escrita animista, coerente, bela e reveladora tem o dom de transformar um perfil, um género ou número numa pessoa, conferindo-lhe verdadeira dimensão humana. E então o taxista, a peixeira, o professor, deixam de ser um género, uma profissão ou simplesmente mais um, para recuperar a importância que têm de facto, para saírem da “mudez do mundo”. Numa sociedade cada vez mais ambígua, onde as palavras perdem significado e a linguagem vive débil, precisamos de Todas as Palavras, para que, cavando no espírito, as possamos cultivar e lá cresçam, e fiquem a render como se de uma conta a prazo se tratasse.

Depois de desenhada a casa…

Pego na tesoura, e aspirando ao mesmo amor com que Pina recorta as pessoas, humanas e não humanas, também eu recortaria a minha velha casa. Primeiro as paredes, elas que tal como as margens de um rio, serviram de refúgio para que aí pudesse soçobrar, amodorrar, fazendo fé que na imobilidade das coisas não morresse nunca o lugar onde fui feliz.

“Nada no mundo aberto e andarilho poderá substituir o espaço fechado da nossa infância, onde algo aconteceu que nos tornou diferentes e que ainda perdura e que podemos resgatar quando recordarmos aquele lugar que foi a nossa casa.”                                                                                                                                                                            Julio Ramón Ribeyro

A eles:

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Dentro está a Ana e a Margarida

Arnaldo Vila Pouca, 37 anos, livreiro de férias e desempregado a dias, que pretende ser Flâneur a tempo inteiro.

Local da fotografia: Urban Cicle Café, debaixo de três rodas e com amigos por perto.

O livro do Arnaldo pode ser comprado aqui: Flâneur