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O Natal de Manuel António Pina
Ao Natal Chega-se Partindo
Quando eu era criança, o Natal entristecia-me. A desusada agitação dos adultos, a mãe metida na cozinha, o cheiro a fritos (as filhoses, as rabanadas, os sonhos) pela casa, as prendas, que me pareciam apenas uma rotina cabisbaixa (e porquê não poder abri-las antes da meia-noite?), o desolador menu da ceia (bacalhau!, eu que imaginava a felicidade sob a forma de um bife com batatas fritas!), tudo me fazia detestar o Natal. Só a construção do presépio me animava; com musgo e com algodão em rama imaginava campos e colinas cobertos de neve; um sinuoso caminho de serradura subia até à gruta, onde o Menino jazia deitado num ninho de pintarroxo (ainda hoje o tenho, a esse ninho); a vaca e o burro eram desproporcionados em relação ao tamanho do Menino, mas os meus pais sempre se recusaram a comprar outros; e o Rei Mago preto tinha-se partido noutro Natal e, no seu lugar, estava agora um jogador do Sporting, com bola e tudo!
Como a infância, o Natal é algo que só podemos ter quando o perdemos. Quando somos crianças, o Natal é próximo de mais, e real de mais, para ser verdadeiro. Só a memória (e a memória construímo-la como construímos um presépio: com pedaços) o torna verdade. E só a memória nos permite saber, enfim, algo essencial: que o Menino da manjedoura éramos nós.
JN, 23/12/2005
Flâneur Arnaldo, “Como Se Desenha Uma Casa”?
Da casa onde vivi a minha infância recordo o fascínio que sentia cada vez que me encontrava com uma das inúmeras portas que escondiam falsos. Cinco velhos andares erguidos no centro do Porto, e entre eles, por baixo de escadas, lá estavam, sombrios, misteriosos, enormes aos olhos de uma criança. Depósito de objectos, lembranças, memórias esquecidas, empilhadas em caixas cheias de coisas vazias, anacrónicas, que se perderam, assim como nós, em algum espaço do tempo.
Quando leio Como Se Desenha Uma Casa, de Manuel António Pina, é como se voltasse a esses esconderijos, a essa parte encoberta do nosso ser. É o véu das recordações que se desprende, e o sempre desejado regresso de que nos fala Homero. Então, sinto os passos das pessoas que amamos que chegam, os passos das pessoas que amamos que partem, nas escadas, nos corredores, as portas que batem… é isso, a nostalgia, o remorso, essa mais-que-coisa que nos fala o poeta…
Manuel António Pina habita as palavras e as palavras habitam-no, por elas se tornou poema. A sua escrita animista, coerente, bela e reveladora tem o dom de transformar um perfil, um género ou número numa pessoa, conferindo-lhe verdadeira dimensão humana. E então o taxista, a peixeira, o professor, deixam de ser um género, uma profissão ou simplesmente mais um, para recuperar a importância que têm de facto, para saírem da “mudez do mundo”. Numa sociedade cada vez mais ambígua, onde as palavras perdem significado e a linguagem vive débil, precisamos de Todas as Palavras, para que, cavando no espírito, as possamos cultivar e lá cresçam, e fiquem a render como se de uma conta a prazo se tratasse.
Depois de desenhada a casa…
Pego na tesoura, e aspirando ao mesmo amor com que Pina recorta as pessoas, humanas e não humanas, também eu recortaria a minha velha casa. Primeiro as paredes, elas que tal como as margens de um rio, serviram de refúgio para que aí pudesse soçobrar, amodorrar, fazendo fé que na imobilidade das coisas não morresse nunca o lugar onde fui feliz.
“Nada no mundo aberto e andarilho poderá substituir o espaço fechado da nossa infância, onde algo aconteceu que nos tornou diferentes e que ainda perdura e que podemos resgatar quando recordarmos aquele lugar que foi a nossa casa.” Julio Ramón Ribeyro
A eles:
Dentro está a Ana e a Margarida
Arnaldo Vila Pouca, 37 anos, livreiro de férias e desempregado a dias, que pretende ser Flâneur a tempo inteiro.
Local da fotografia: Urban Cicle Café, debaixo de três rodas e com amigos por perto.
O livro do Arnaldo pode ser comprado aqui: Flâneur