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Pedro Eiras

Estou a ler Textos para Nada, de Samuel Beckett, numa edição já antiga (1970) das Publicações Dom Quixote (páginas ásperas, amarelecidas; na capa, o retrato de Beckett, a três quartos: de olhos quase minerais; pele gasta, de iguana; como um fóssil). São ficções breves; memórias, sonhos, quem sabe o quê. Às vezes fazem lembrar os périplos de personagens de Kafka (mas com menos convicções); ou os passeios de personagens de Walser (mas com menos leveza). São textos extemporâneos, claro; penso: se Beckett os escrevesse hoje, conseguiria publicá-los? Vivemos tempos demasiado exigentes de estórias, sentidos, desenlaces – este livro, pelo contrário, perde-se, perde-nos. Para nada, diz o título? Para nada, magnificamente para nada, assim seja.

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No amor…

No amor entre um homem e uma mulher há sempre um momento em que esse amor atinge o seu zénite, em que não há nele nada de consciente, de racional nem de sensual. Esse momento foi para Nekhliúdov na noite da luminosa ressurreição de Cristo. Ao recordar agora Katiucha, de todas as situações em que a vira, esse momento superava todos os outros. A cabeça negra, lisa, brilhante, o vestido branco pregueado, que lhe moldava virginalmente o corpo esbelto e o peito pequeno, e aquele rubor, e aqueles ternos olhos negros brilhantes, um pouco tortos devido à noite sem dormir, e em todo o seu ser, havia duas linhas principais: a pureza virginal do amor não apenas por ele – isso ele sabia -, mas também de um amor por todos e por tudo, não apenas pelo que de bom existe no mundo – até por aquele mendigo com o qual ela trocou beijos.
Nekhliúdov sabia que havia nela esse amor, porque nessa noite e nessa manhã tinha consciência dele, e tinha consciência de que nesse amor se fundia com ela num único ser.
Ah, se tudo tivesse ficado pelo sentimento que houve nessa noite!

Lev Tolstoi, in Ressurreição

Ressurreição

Pintura de Riza-yi `Abbasi (Pérsia 1565–1635)

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O Homem que Morreu

(…)Depois, o macho começou a passear atrás delas com um ar condescendente; mas sentiu a pata detida pelo limite da corda, e rendeu-se com uma espécie de colapso. Arreava a bandeira, dir-se-ia que minguava e se dissolvia na sombra. Apesar de novo e com um rabo de penas que, embora vistosas, não tinham chegado ao seu auge. O dia voltou, porém, a declinar, e a maré de vida dentro dele fê-lo esquecer o acidente. Quando a galinha favorita deu uma distraída mas provocatória passeata ao seu alcance, atirou-se a ela com todas as penas a vibrar. E o homem que tinha morrido pôde contemplar a vibração instável mas assumida de ave vergada; sem ver a ave mas só a crista de uma onda de vida que, durante um minuto, cobria outra em pleno fluxo de um oscilante oceano de vida. Pareceu-lhe que o destino da vida era afinal mais feroz e coercivo que o destino da morte. A fatalidade da morte uma sombra, se comparada com o destino violento da vida, com a onda implacável da vida.(…)

(…)- O Verbo é como um mosquito que à noite nos pica. Tanto as palavras como os mosquitos atormentam e perseguem o homem até ao túmulo. Mas não conseguem ultrapassar o túmulo. Eu já ultrapassei o local onde as palavras deixam para sempre de morder, o ar é puro, e nada há para dizer: estou sozinho na minha pele, que é muralha de todo o meu domínio.
Tinha curado as feridas, e disfrutava da imortalidade de estar vivo sem impaciência. Porque no túmulo tinha desfeito o nó a que chamamos cuidados. Porque no túmulo tinha largado o eu que luta, se preocupa e cansa. Com um eu destituído de cuidados estava curado, começava a estar completo na sua pele e ria sozinho, satisfeito com a solidão pura, que é uma espécie de imortalidade.(…)

D. H. Lawrence, in O Homem Que Morreu

Pintura de D. H. Lawrence

O Homem Que Morreu

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O Prelúdio

(…)

Eu era como aquele que se debruça de uma barca
A deslocar-se lentamente sobre o seio
De uma água serena, consolado-se
Com as descobertas que o seu olhar faz
Conforme desce ao fundo do abismo,
E vê tantos espectáculos belos – algas, peixes, flores,
Grutas, seixos, raízes e árvores, e imagina ainda mais,
Muitas vezes perplexo e não conseguindo separar
A sombra da realidade, os rochedos e o céu,
As montanhas e as nuvens, reflectidos na profundeza
Daquele curso límpido, de tudo o que ali vive
No seu verdadeiro lugar; agora a sua visão é atravessada
Pelo reflexo da sua própria imagem, por um raio de sol,
E movimentos ondulantes vindos não se sabe de onde,
Dificuldades que tornam a sua tarefa ainda mais atraente;
Tal é a agradável ocupação que há muito
Prosseguimos, inclinando-nos sobre o passado
Com igual sucesso; e raramente podem surgir
Formas mais belas ou mais nítidas que estas,
Para as quais a minha narrativa, indulgente amigo,
Vem chamar a tua atenção.

(…)

William Wordsworth, in O Prelúdio

O Prelúdio

Os livros do Arnaldo

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Uma Paciência Selvagem, de Adrienne Rich

Madeira-De-Sonho

Na madeira velha, baratucha, riscada, da mesinha da máquina de escrever
há uma paisagem, feita de veios, que só uma criança pode ver
ou o eu mais velho da criança,
uma mulher sonhando quando devia estar a bater à máquina
o último relatório do dia. Se isto fosse um mapa,
pensa ela, um mapa decretado para memorizar
podendo ela talvez percorrê-lo, ele mostra
cordilheira atrás de cordilheira esbatendo-se no deserto nebulento,
aqui e além um sinal de aquíferos
e um possível bebedouro. Se isto fosse um mapa
seria o mapa da última idade da sua vida,
não um mapa de escolhas mas um mapa de variações
sobre a escolha maior. Seria o mapa pelo qual
ela poderia ver o fim das escolhas turísticas,
de distâncias azuladas e arroxeadas de romantismo,
pelo qual ela reconheceria que a poesia
não é revolução mas uma forma de saber
por que tem de vir a revolução. Se esta mesinha de madeira baratucha,
produzida em massa, vinda da Companhia de Gás de Brooklyn,
produzida em massa porém duradoura, presente agora aqui,
é o que é porém um mapa-de-sonho
tão renitente, tão simples,
pensa ela, o material e o sonho podem juntar-se
e isso é o poema e isso é o relatório retardatário.

Adrienne Rich, in Uma Paciência Selvagem

Uma Paciência Selvagem

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O que sucede e não sucede – Javier Marías

Amanhã na Batalha Pensa Em Mim fala, entre outras coisas, do engano no sentido mais vasto da palavra: «Viver no engano é fácil e, mais ainda, é a nossa condição natural e por isso não nos devia doer tanto.» Recorda-se que todos vivemos parcial e permanentemente enganados ou então enganando, contando apenas uma parte, ocultando outra parte e nunca as mesmas partes às diferentes pessoas que nos rodeiam. E no entanto não conseguimos habituar-nos a isso, segundo parece. E quando descobrimos que algo não era como vivemos – um amor ou uma amizade, uma situação política ou uma expectativa comum e mesmo nacional -, surge-nos na vida real esse dilema que tanto nos pode atormentar e que em grande medida é o território da ficção: já não sabemos como foi verdadeiramente o que parecia certo, já não sabemos como vivemos o que vivemos, se foi o que julgávamos enquanto estávamos enganados ou se devemos lançar isso no saco sem fundo do imaginário e tratar de reconstruir os nossos passos à luz da revelação actual e do desengano. A mais completa biografia, até a nossa própria, é feita apenas de fragmentos irregulares e de descoloridos retalhos. Acreditamos poder contar as nossas vidas de maneira mais ou menos razoável e honesta, e quando começamos apercebemo-nos de que estão povoadas de zonas de sombra, de episódios inexplicados e talvez inexplicáveis, de opções não tomadas, de oportunidades não aproveitadas, de elementos que ignoramos porque dizem respeito aos outros, dos quais ainda é mais difícil saber tudo ou saber um pouco que seja. O engano e a sua descoberta fazem-nos ver que também o passado é instável e movediço, que nem sequer o que nele parece já firme e a salvo é definitivo ou é para sempre, que o que foi está também inquinado pelo que não foi, e que o que não foi ainda pode ser.
O género do romance fornece isso ou sublinha-o ou trá-lo à nossa memória e à nossa consciência, daí talvez o facto de perdurar e de não ter morrido, ao contrário do que tantas vezes foi anunciado. Daí que talvez não seja justo o que disse no início, a saber, que o romance conta o que não sucedeu. Talvez aconteça antes que os romances sucedem pelo facto de existirem e serem lidos e, vendo bem as coisas, passado o tempo tem mais realidade D. Quixote do que qualquer dos seus contemporâneos históricos da Espanha do século XVII; Sherlock Holmes aconteceu mais do que a Rainha Victória, porque continua a acontecer repetidamente, como se fosse um ritual; a França do início do século mais verdadeira e perdurável, mais «visitável», é sem dúvida a que aparece no Em Busca do Tempo Perdido; e imagino que para os senhores a imagem mais autêntica do vosso país esteja misturada com as páginas inventadas de don Rómulo Gallegos. Um romance não apenas conta como nos permite assistir a uma história ou a acontecimentos ou a um pensamento, e ao assistir compreendemos.

Discurso pronunciado por Javier Marías em Caracas a 2 de Agosto de 1995, durante a cerimónia de entrega do Prémio Internacional Rómulo Gallegos

Imagem de Destaque: Outros Destinos, de Jorge Martins

Amanhã na Batalha Pensa em Mim

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Confabulações

O que me levou a escrever ao longo dos anos foi o pressentimento de que há alguma coisa que precisa de ser dita e que, se eu não a tentar dizer, há o risco de ela ficar por dizer. Imagino-me não tanto como um escritor consequente e profissional, mas mais como um homem para as emergências.
Depois de ter escrito algumas linhas, deixo que as palavras retornem à criatura da sua linguagem. E, lá, elas são instantaneamente reconhecidas e saudadas por um conjunto de outras palavras, com as quais têm afinidades de sentido ou de oposição, de metáfora ou de aliteração ou ritmo. Escuto as suas confabulações. Juntas, estão a contestar o uso que eu dei às palavras que escolhi. Estão a questionar os papéis que lhes atribuí.
Por isso, modifico as linhas, mudo uma ou duas palavras e submeto-as a nova apreciação. Começa outra confabulação.
E continuo assim até haver um murmúrio surdo de assentimento provisório. Então, prossigo para o parágrafo seguinte.
Começa outra confabulação…
Os outros podem classificar-me como quiserem enquanto escritor. Para mim próprio sou o filho da puta – e conseguem adivinhar quem é a puta, não conseguem?

John Berger, in Confabulações

Ilustração de Jean-François Martin

Confabulações

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Javier

Quando alguém passa a ser apenas o seu apelido, esse alguém costuma ser considerado um triunfo – sobretudo em França, onde é um cunho de unicidade -, mas na verdade é uma despersonalização, uma coisificação, uma comercialização, uma condecoração barata que outros podem pendurar a troco de pouco: de lisonjas, de um pequeno investimento ou de vagas promessas, nada mais. Em Espanha, curiosamente, ainda se dá mais importância ao facto de alguém passar a ser apenas um nome próprio, algo ao alcance de quatro ou cinco ou seis: «Federico» é Garcia Lorca sem lugar para dúvidas, como «Rubén» é Rubén Darío, «Juan Ramón» é o Prémio Nobel Jiménez, «Ramón» é Gómez de la Serna, «Mossèn Cinto» é Verdaguer e «Garcilaso», cinco séculos antes, é Garcilaso de la Vega, há muito tempo que a lista não aumenta, quem sabe se para entrar nela também seja preciso um apelido demasiado longo ou por de mais comum ou que se preste a confusão (a existência de Lope de Vega deve ter ajudado os três, «Garcilaso», «Lope» e «Inca Garcilaso», a quem se chama de modo tão absurdo para o distinguir do seu homónimo cabal), e eventualmente um pingo de afecto pseudopopular que convide à familiaridade.

Javier Marías, in Assim Começa o Mal

 

Anjo e Duende

Poemas

Assim Começa o Mal

As Pequenas Histórias

Curiosidades Literárias e Outros Contos

Platero e Eu

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A velha senhora de Borges

«Já não sonho senão com mortos», foram das últimas palavras que lhe ouviram dizer. Nunca foi estúpida, mas não havia gozado, que eu saiba, de prazeres intelectuais: ficaram-lhe os da memória e, depois, o esquecimento. Sempre foi generosa. Recordo os seus tranquilos olhos claros e o seu sorriso. Quem sabe o tumulto das paixões, agora perdidas que arderam dentro dessa velha mulher agraciada. Muito sensível a plantas, cuja modesta vida silenciosa era afinal a sua vida, cultivava no seu quarto umas begónias e mexia nas folhas que não via. Até 1929, ano em que se fechou no seu permanente dormitar, contava acontecimentos históricos sempre com as mesmas palavras e pela mesma ordem, como se fosse o pai-nosso, e suspeitei de que já não correspondiam a imagens. Tanto lhe dava comer uma coisa como outra. Em suma: era feliz.
Dormir, como se sabe, é o mais secreto dos nossos actos. Dedicamos-lhe uma terça parte da vida e não o compreendemos. Para uns não passa de um mero eclipse na nossa vigília, para outros é um estado mais complexo que abrange, ao mesmo tempo, o ontem, o hoje e o amanhã. Para outros ainda, é uma não interrompida série de sonhos. Dizer que a senhora de Jáuregui passou dez anos num caos tranquilo é porventura um erro. Cada instante desses dez anos pode ter sido um puro presente sem antes nem depois. Não nos maravilhemos demasiado desse presente que contamos por dias e por noites e pelos centenares de folhas de muitos calendários e por ansiedades e factos: é o que atravessamos cada manhã antes de acordarmos e cada noite antes do sonho. Todos os dias somos duas vezes aquela velha senhora.

 

Jorge Luis Borges, in Relatório de Brodie
Tradução de António Alçada Baptista
Quetzal Editores

Pintura: Begonia in a Pot, Odilon Redon
Pintura: Interior In Strandgade, Hammershøi

Relatório de Brodie

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Furor e Mistério, René Char

Tinha onze ou doze anos, quando aquilo a que chamava o grandíssimo relâmpago se abateu sobre mim pela primeira vez; tudo o resto deixou de ter importância. O dia não ilumina, só existem a noite e a claridade, mas essa claridade vem da noite, é o grandíssimo relâmpago. Só cintila de tempos a tempos, um número restrito de vezes durante uma vida, mas em cada relâmpago vislumbramos algo mais do que aqueles que só vêem durante o dia. Mesmo que depois o relâmpago ainda torne mais obscura a obscuridade que lhe sucede.

René Char

Basta de Escavar

Basta de escavar, de dilapidar a nossa mais próxima parte.
O pior está em todos nós, caçador, no nosso flanco. Vós que aqui não sois mais do que uma pá levantada pelo tempo, voltai-vos sobre o meu amor, que soluça a meu lado, e despedaçai-nos, peço-vos, fazei-me morrer de uma vez por todas.

René Char, in Furor e Mistério

Um Pássaro…

Um pássaro canta sobre um fio
Essa vida simples, à flor da terra.
Com isso se alegra o nosso Inferno.

Depois o vento começa a sofrer
E as estrelas dão-se conta.

Ó loucas, por percorrerem
Uma tão profunda fatalidade!

René Char, in Furor e Mistério

 

Pintura: Reflexão, de Odilon Redon

Furor e Mistério