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Hamnet

As filas e filas de maçãs movem-se, abanam, tremem nas prateleiras. Cada maçã está centrada numa cavidade especial, entalhada nas prateleiras de madeira que percorrem as paredes deste pequeno armazém.
Treme, treme, abana, abana.
(…)
As maçãs dão cambalhotas; vão surgindo pedúnculos dos lados de baixo, há cálices voltados para os lados, depois para trás, depois para cima, e depois para baixo. O ritmo das pancadas varia: pára; abranda; recomeça; interrompe-se de novo.
Os joelhos de Agnes estão erguidos, abertos na oblíqua como asas de borboleta. Os pés, ainda dentro das botas, repousam na prateleira oposta; as mãos estão apoiadas na parede caiada de branco. As suas costas endireitam-se e arqueiam-se, aparentemente por iniciativa própria, e da garganta saem-lhe sons baixos idênticos a rugidos. É apanhada de surpresa por o seu corpo se comportar desta maneira.
(…)
No estreito espaço entre ela e a prateleira oposta encontra-se o o professor de Latim. Está de pé dentro do pálido V das suas pernas. Tem os olhos fechados; os dedos agarrados à curva das suas costas. Foram as mãos dele que lhe desataram os laços no pescoço, que lhe puxaram para baixo a camisa, que trouxeram à luz os seus seios – e como eles pareceram espantados e brancos, assim ao ar daquele modo, em pleno dia, em frente de outrem; os seus olhos castanho-rosados retribuíram o olhar, surpreendidos. Todavia, foram as mãos dela que levantaram as saias, que a impulsionaram para aquela prateleira, que puxaram para si o corpo do professor de Latim. Tu, disseram-lhe as mãos, eu escolhi-te.
E agora existe isto – este encaixe. É inteiramente diferente de tudo o que sentiu antes. Faz-lhe lembrar uma mão a calçar uma luva, um cordeiro, molhado, a deslizar para fora de uma ovelha, um machado a rachar um tronco, uma chave a rodar uma fechadura oleada. Como é possível, pensa, olhando para a cara do professor. que uma coisa encaixe tão bem, com tal precisão, com uma tal sensação de exactidão?
As maçãs, afastando-se dela de um lado e de outro, volteiam e entrechocam-se nas suas concavidades.

Maggie O’Farrell, em Hamnet

Hamnet

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O Tao da Flâneur

– O que é que gostas mais de fazer no mundo, Pooh?
– Bem, – disse o Pooh – o que eu mais gosto… – e depois teve de parar e pensar. Porque embora comer mel fosse uma coisa muito boa, havia um momento mesmo antes de o começar a comer que era melhor do que comê-lo, só que ele não sabia como é que se chamava.
E então pensou que estar com o Christopher Robin era uma coisa muito boa de fazer, e ter o Leitão por perto era uma coisa muito simpática de ter; e então, depois de ter pensado tudo, disse: “O que eu gosto mais no mundo inteiro é eu e o leitão irmos visitar-te, e tu dizeres ‘Que tal comermos qualquer coisinha?’ e eu dizer ‘Bem, eu não me importava de comer qualquer coisinha, e tu, Leitão?’, e ser um dia bom para cantigas, e os pássaros estarem a cantar.”

Criança e Rosa

A Casa do Largo Puff

Tao Te King – Livro do Caminho e do Bom Caminhar

Nobreza de Espírito – Um Ideal Esquecido

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O Amante de Lady Chatterley

(…) Acredito num mistério superior que não permite que os corações se apaguem. Se está na Escócia e eu nos Midlands e não a posso abraçar e agarrar, resta-me no entanto algo de si. A minha alma palpita docemente consigo na pequena chama de Pentecostes e é como a paz que se sente depois de fazer amor. Há uma chama que nasce quando se faz amor. Até as flores nascem do amor entre o sol e a terra, E tudo isto é um problema delicado que exige paciência e uma longa espera.
E assim gosto da minha castidade neste momento, por que é como a paz que sobrevém ao amor. Gosto de levar uma vida casta, como as goteiras gostam da água da chuva. Gosto da castidade, que é o momento de paz no nosso amor e que é uma chama branca, muito branca. E quando a primavera chegar, quando passarmos a viver juntos, então poderemos, ao fazer amor, tornar a pequena chama brilhante, amarela e brilhante. Agora é impossível. Agora temos de ser castos, e é bom ser casto, é como um rio de água fria na alma. Gosto da castidade que corre agora entre nós. É água fresca da chuva.
Como é possível desejar permanentemente as cansativas aventuras? Ser apenas Don Juan é terrível, não chega para conseguir extrair paz do amor, quando a pseudochama brilha, incapaz de ser casto de vez em quando, como quem se senta na margem de um rio. (…)

D. H. Lawrence, in O Amante de Lady Chatterley
Edição Relógio D’Água

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Pintura: Woman Drying Her Hair. Joseph DeCamp

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Criança e Flor

Feliz o recém-nascido,
(De acordo com as melhores conjecturas queria referir
Como evolui no mundo a nossa Existência), abençoada a criança,
Acariciada nos braços da Mãe, adormecendo
Embalada no seio materno; ela, com a sua alma,
Bebe as emoções no olhar materno!
Para ela, na Presença única e amada, existe
Uma virtude que irradia e exalta
Os objectos através da mais vasta comunhão dos sentidos.
Não é uma exilada, perplexa e abatida;
Ao longo das suas veias de criança
Misturam-se a gravitação e os laços filiais
Da Natureza que a ligam ao Universo.
Aponta para uma flor ainda com a mão
Demasiado hesitante para a colher, mas para ela
Já é o amor, que, vindo da sua mais pura fonte terrestre,
Tornou bela esta flor; já as sombras
Da piedade que chegam de uma ternura interior
Ficam à sua volta sobre o que traz consigo
As cicatrizes informes da violência e do mal.
Forçosamente tal ser vivo existe,
Por muito frágil que seja, ao mesmo temo frágil e débil,
Ele é um ser deste universo cheio de vida:
O sentimento transmitiu-lhe uma força
Que, através das faculdades crescentes dos sentidos,
Como instrumentos do único e supremo Espírito,
Cria, sendo que cria e quem recebe,
Num trabalho que é a aliança com as obras
Que contempla, Tal é, verdadeiramente, o inicial
Espírito poético na nossa vida humana,
Que, devido à uniforme disciplina dos anos,
Em muitos se torna menor ou é destruído; em alguns,
Mesmo que se altere, por se desenvolver ou não,
Ele domina até à morte.

William Wordsworth, in O Prelúdio

O Prelúdio

Os livros do Arnaldo

Pintura de Albert Anker

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Alexandre Andrade

Estou a ler um ensaio de Gérard Genette, intitulado Seuils, que se debruça sobre o paratexto, ou seja, os elementos do livro publicado que circundam, complementam e enquadram o texto propriamente dito: título, prefácio, notas de rodapé, índice, bibliografia, etc. Gosto do estilo de Genette, que consegue equilibrar humor, erudição e vontade genuína de partilhar conhecimento e pontos de vista, embora ocasionalmente se torne demasiado palavroso e coloquial para o meu gosto. Em ficção, decidi por fim lançar-me à aventura de encetar o primeiro volume de O Homem Sem Qualidades, de Musil. É uma altura da minha vida tão boa como qualquer outra para isso. Ainda é cedo para poder transmitir qualquer impressão. Para já, pouco mais se sabe do que isto: o homem sem qualidades chama-se Ulrich, mora numa vivenda e tem uma amante. Também tenho andado a ler, muito espaçadamente, a antologia completa dos contos de V.S. Pritchett, um calhamaço que exige uma certa preparação física para ser manuseado. Nos que já li, sobressai uma capacidade rara de retratar traços de carácter por meio de pequenos enredos aparentemente inócuos. Em poesia, estou a ler Azul e Vermelho, de Adriana Crespo, uma autora que tem vindo a construir uma obra singularíssima de beleza e inteligência, espalhada por alguns (demasiado raros) livros, inéditos e uma constelação de blogs. Seria bom que o reconhecimento mais amplo desta autora, que é inevitável, se situe num futuro muito próximo e não numa qualquer posteridade distante que lance sobre nós um olhar condoído por não termos sabido apreciar devidamente a excelência.

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https://www.flaneur.pt/produto-etiqueta/robert-musil/

https://www.flaneur.pt/produto/azul-vermelho/

 

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No amor…

No amor entre um homem e uma mulher há sempre um momento em que esse amor atinge o seu zénite, em que não há nele nada de consciente, de racional nem de sensual. Esse momento foi para Nekhliúdov na noite da luminosa ressurreição de Cristo. Ao recordar agora Katiucha, de todas as situações em que a vira, esse momento superava todos os outros. A cabeça negra, lisa, brilhante, o vestido branco pregueado, que lhe moldava virginalmente o corpo esbelto e o peito pequeno, e aquele rubor, e aqueles ternos olhos negros brilhantes, um pouco tortos devido à noite sem dormir, e em todo o seu ser, havia duas linhas principais: a pureza virginal do amor não apenas por ele – isso ele sabia -, mas também de um amor por todos e por tudo, não apenas pelo que de bom existe no mundo – até por aquele mendigo com o qual ela trocou beijos.
Nekhliúdov sabia que havia nela esse amor, porque nessa noite e nessa manhã tinha consciência dele, e tinha consciência de que nesse amor se fundia com ela num único ser.
Ah, se tudo tivesse ficado pelo sentimento que houve nessa noite!

Lev Tolstoi, in Ressurreição

Ressurreição

Pintura de Riza-yi `Abbasi (Pérsia 1565–1635)

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O Prelúdio

(…)

Eu era como aquele que se debruça de uma barca
A deslocar-se lentamente sobre o seio
De uma água serena, consolado-se
Com as descobertas que o seu olhar faz
Conforme desce ao fundo do abismo,
E vê tantos espectáculos belos – algas, peixes, flores,
Grutas, seixos, raízes e árvores, e imagina ainda mais,
Muitas vezes perplexo e não conseguindo separar
A sombra da realidade, os rochedos e o céu,
As montanhas e as nuvens, reflectidos na profundeza
Daquele curso límpido, de tudo o que ali vive
No seu verdadeiro lugar; agora a sua visão é atravessada
Pelo reflexo da sua própria imagem, por um raio de sol,
E movimentos ondulantes vindos não se sabe de onde,
Dificuldades que tornam a sua tarefa ainda mais atraente;
Tal é a agradável ocupação que há muito
Prosseguimos, inclinando-nos sobre o passado
Com igual sucesso; e raramente podem surgir
Formas mais belas ou mais nítidas que estas,
Para as quais a minha narrativa, indulgente amigo,
Vem chamar a tua atenção.

(…)

William Wordsworth, in O Prelúdio

O Prelúdio

Os livros do Arnaldo

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Confabulações

O que me levou a escrever ao longo dos anos foi o pressentimento de que há alguma coisa que precisa de ser dita e que, se eu não a tentar dizer, há o risco de ela ficar por dizer. Imagino-me não tanto como um escritor consequente e profissional, mas mais como um homem para as emergências.
Depois de ter escrito algumas linhas, deixo que as palavras retornem à criatura da sua linguagem. E, lá, elas são instantaneamente reconhecidas e saudadas por um conjunto de outras palavras, com as quais têm afinidades de sentido ou de oposição, de metáfora ou de aliteração ou ritmo. Escuto as suas confabulações. Juntas, estão a contestar o uso que eu dei às palavras que escolhi. Estão a questionar os papéis que lhes atribuí.
Por isso, modifico as linhas, mudo uma ou duas palavras e submeto-as a nova apreciação. Começa outra confabulação.
E continuo assim até haver um murmúrio surdo de assentimento provisório. Então, prossigo para o parágrafo seguinte.
Começa outra confabulação…
Os outros podem classificar-me como quiserem enquanto escritor. Para mim próprio sou o filho da puta – e conseguem adivinhar quem é a puta, não conseguem?

John Berger, in Confabulações

Ilustração de Jean-François Martin

Confabulações

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Furor e Mistério, René Char

Tinha onze ou doze anos, quando aquilo a que chamava o grandíssimo relâmpago se abateu sobre mim pela primeira vez; tudo o resto deixou de ter importância. O dia não ilumina, só existem a noite e a claridade, mas essa claridade vem da noite, é o grandíssimo relâmpago. Só cintila de tempos a tempos, um número restrito de vezes durante uma vida, mas em cada relâmpago vislumbramos algo mais do que aqueles que só vêem durante o dia. Mesmo que depois o relâmpago ainda torne mais obscura a obscuridade que lhe sucede.

René Char

Basta de Escavar

Basta de escavar, de dilapidar a nossa mais próxima parte.
O pior está em todos nós, caçador, no nosso flanco. Vós que aqui não sois mais do que uma pá levantada pelo tempo, voltai-vos sobre o meu amor, que soluça a meu lado, e despedaçai-nos, peço-vos, fazei-me morrer de uma vez por todas.

René Char, in Furor e Mistério

Um Pássaro…

Um pássaro canta sobre um fio
Essa vida simples, à flor da terra.
Com isso se alegra o nosso Inferno.

Depois o vento começa a sofrer
E as estrelas dão-se conta.

Ó loucas, por percorrerem
Uma tão profunda fatalidade!

René Char, in Furor e Mistério

 

Pintura: Reflexão, de Odilon Redon

Furor e Mistério