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Alabardas, José Saramago

“Afinal, talvez ainda vá escrever outro livro”, escreveu Saramago no seu diário no dia 15 de agosto de 2009. Poucos meses depois de terminar Caim, Saramago começou a redigir uma história motivada por uma preocupação antiga: a ausência de greves em fábricas de armamento. O mote para a construção da narrativa é a conhecida bomba que não chegou a explodir na Guerra Civil Espanhola devido a um acto de sabotagem por parte de quem a fabricou, um acontecimento comovedor para o Nobel português.

Em 2006, enquanto escrevia as suas Pequenas Memórias de uma vida que afinal se revelara tão grande na verdadeira grandeza da existência, a doença instalou-se na sua rotina. Mas a realidade sempre pediu histórias ficcionadas que parecem dar mais sentido à vida e novas interpretações ao mundo. E era isto que fazia pulsar José Saramago que, perante o abismo iminente da morte, se agarrou à literatura, prolongamento do pensar.

Através da história inacabada de Artur Paz Semedo, funcionário de uma fábrica de armamento, homem burocrata, adulador e servil, e de Felícia, mulher de espírito crítico e forte (quase à semelhança de Blimunda), Alabardas remete-nos para o tão reconhecível universo literário e filosófico de Saramago, reflectindo sobre a responsabilidade pessoal diante dos abusos do poder, a esperança na humanização e os conflitos morais numa sociedade que parece cair na arendtiana banalização do mal, no esquecimento do outro e de nós mesmos.

Mas há ainda outro Nobel em Alabardas. Günter Grass, romancista, artista plástico e activista, que outrora trabalhou como pedreiro e mineiro, ilustrou a obra, que conta também com textos de Fernando Gómez Aguilera e Roberto Saviano.

“Escrevo para desassossegar os meus leitores”, disse José aquando da apresentação de Caim. Por isso, Saramago estará para sempre vivo.

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Maneiras de Voltar para Casa, Alejandro Zambra

Será a casa de Zambra o espaço físico onde habitamos ou a casa que somos?

A acção de Maneiras de Voltar para Casa decorre em duas épocas: os anos 80, durante o regime de Pinochet, época de medo, mas em que existe sempre o reverso – a coragem -, e o presente. Mas em épocas distintas, separadas por 20 anos, a casa é a mesma: o pai sentado no cadeirão a receber o presente com calma e resignação, a mãe a fumar às escondidas, mas é sobretudo o silêncio que é o mesmo. O silêncio de quem parece não tomar uma posição, o silêncio que pode ser resultado do consentimento, do medo ou da indiferença.
É nesta casa silenciosa, nos subúrbios de Santiago do Chile, que um menino de nove anos  cria histórias para explicar as cenas esporádicas de violência e os desaparecimentos dos vizinhos. Mais tarde, no tempo presente da acção, já adulto, o protagonista desta estória procura enfrentar tudo o que não podia perceber enquanto criança e voltar ao passado conturbado do seu país. Enquanto escreve um romance que confronta a inocência, a culpa e a cumplicidade, volta para casa e para as memórias da sua infância. Memórias individuais e memórias colectivas do Chile dos anos 80.  Uma época em que as crianças  aprendiam a falar e a ler enquanto os adultos lutavam ou fugiam; em que faziam bonecos enquanto os adultos matavam ou morriam; uma época em que a vida parecia ser tão vulnerável quanto um avião de papel lançado ao vento.

Voltar a casa é voltar às memórias, às memórias que construímos de nós, dos outros e do país. Partilhar as memórias é permitir que os outros entrem em nossa casa e conheçam quem somos. Ainda que o registo autobiográfico nunca seja admitido, ao ler este livro senti-me a entrar em casa de Zambra.