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Escalas do Levante, Amin Maalouf

De Constantinopla a Alexandria, passando por Esmirna, Adana ou Beirute, o Levante, ponto de passagem entre o Ocidente e o Oriente, foi durante muito tempo um lugar onde conviviam línguas, costumes e crenças. Levante de levant, de levantar, de sol nascente, de berço de religiões, de civilizações, de paixões, mas também de ódios. Um universo precário a que a História lentamente deu forma antes de o demolir, quebrando, de passagem, inúmeras vidas.

Este é o Levante da História e o Levante que Maalouf nos traz. O protagonista deste romance, Ossyane, é um desses homens a quem a História universal muda a história pessoal. A agonia do Império Otomano, as duas guerras mundiais e as tragédias que, ainda hoje, dilaceram o Médio Oriente, foram moldando a sua existência. Pacientemente, ele recorda ao longo do livro a sua infância principesca, a avó demente, o pai revoltado, o irmão desonrado, a sua estada em França sob a ocupação nazi, os anos da Resistência, o encontro com a sua amada fugitiva, Clara, os seus momentos de fervor, de heroísmo e de sonho e o regresso ao seu Levante. Mas depois veio a guerra israelo-árabe e com ela o ódio, os muros, as fronteiras aparentemente intransponíveis, físicas e psicológicas.

Este é um livro belo, escrito com paixão e empatia, do qual emana um grito de paz, apelando à necessidade de cada sujeito, judeu ou muçulmano, colocar o outro na posição de espelho de si mesmo. Mostra-nos também a necessidade de o Homem ser superior à sua cultura e que as relações humanas são mais importantes do que os vínculos históricos.

O livro As Escalas do Levante está disponível para venda na Flâneur: http://flaneur.tictail.com/product/escalas-do-levante

 

 

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A Cruzada das Crianças, Afonso Cruz

Não se sabe se esta estória é uma lenda ou se é verdadeira História. Mas ainda que não existam documentos fidedignos sobre ela, não é por isso que perde valor e que não merece ser contada. A Cruzada das Crianças terá sido uma cruzada que se realizou em 1212, formada por uma multidão de crianças da Europa Central e pelos seus pais. A Cruzada terá partido de Marselha em 1213, motivada não tanto pela conquista da Terra Santa, mas sobretudo pela vitória da pureza ética das crianças. No entanto, cerca de cem navios terão naufragado no Mediterrâneo e não se sabe ao certo quantos terão chegado efectivamente à Terra Santa, nem o que aconteceu às crianças e às suas famílias.

No livro “A Cruzadas das Crianças” (Alfaguara), Afonso Cruz parte da lenda ou da História para dar voz às reivindicações das crianças que, actualmente, se rodeiam de cansaço, de falta de tempo, de individualismo (é assim a sociedade dos adultos e se não lutarmos por uma mudança, esta é uma engrenagem da qual um dia farão também parte), propondo a criação de novo mundo, mais harmonioso e mais humano.

E que reivindicações são essas? Que as estradas sejam encurtadas para os avós não demorarem tanto tempo a percorrê-las e para que possamos estar todos mais “abraçados”. Mais felicidade, acreditanto que as bibliotecas podem ter um papel crucial na realização desse sonho. Que se substituam os espelhos por janelas, para em vez de olharmos para o nosso exterior, passemos a olhar para as outras pessoas. À excepção da Assembleia da República, onde devem manter-se as janelas e os espelhos; janelas para os políticos “verem o que se passa connosco” e espelhos para “verem de quem é a culpa”.

Este é um livro bonito, que merece a leitura de crianças e de adultos. Deixo um pequeno excerto do momento em que a Cruzada passou pelo banco:

“Criança 1: Para terem cofres desse tamanho não podem ter só dinheiro.
Bancário: Bom, há títulos e…”
(…)
Criança 2: Não há qualquer coisa importante? (…) Como ser feliz. Como fazer construções na areia. Como brincar às escondidas.
(…)
Bancário: O dinheiro permite-nos comprar coisas que nos fazem felizes.
(…)
Criança 1: Se o senhor abrir o cofre, as pessoas podem ser todas felizes, cheias de brinquedos?
(…)
Bancário: O trabalho é essencial para se ter acesso ao conteúdo do cofre.
(…)
Criança 1: Para ser feliz é preciso trabalhar? Mesmo que isso nos faça infelizes o tempo todo? É que depois de sermos infelizes durante o dia todo, já não temos tempo para brincar.”

Pelas crianças e pelos adultos, procuremos  criar uma sociedade fundada no amor, na tolerância, na liberdade de escolha, na igualdade de oportunidades, na entre-ajuda, no conhecimento e no saber. Parece uma utopia? Antes a utopia do que a desumanização. É a utopia que nos faz evoluir.

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Puff, amigo de Pina e de todos nós

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É o livro preferido de Manuel António Pina e um dos nossos também. Puff foi escrito pelo britânico A. A. Milne no início do século XX e publicado pela primeira vez em 1926. Pina disse numa intervenção na Culturgest, integrada no ciclo de conferências “Clássicos do Século XX”, que “o caracter chinês P’u (que se pronuncia quase como Pooh) representa, no conjunto dos signos que o compõem, qualquer coisa como “árvore não cortada”, isto é, no seu estado natural, e que P’u é um dos princípios centrais do taoismo, traduzido no Ocidente como o Princípio do Bloco Intacto, significando “natural, simples, espontâneo” ou, como Pooh talvez dissesse, que as coisas (e, no caso, eu próprio e o que eu penso ou não penso sobre “Winnie-the-Pooh”), são assim mesmo e há pouco a fazer quanto a isso”.

Puff é uma homenagem à amizade, à natureza, à simplicidade, à inocência, à grandeza da infância.

“Winnie the Pooh é um dos mais persistentes ruídos de fundo da minha relação com as coisas e com a literatura, para não falar da minha relação comigo mesmo. Pooh e o seu olhar desprendidamente curioso intrometem-se, eu é que sei!, constantemente na minha vida. Principalmente em certas respostas que a minha vida me vai dando, onde me parece escutar a silenciosa voz da feliz e amável sabedoria de um Urso Com Muito Pouco Miolo, que talvez seja afinal, quem sabe?, a voz elementar da própria existência, pois que, convocando agora Alberto Caeiro, talvez haja metafísica bastante em não haver metafísica nenhuma.” (Pina)

Este é um livro maravilhoso que ensina as crianças a serem crianças e os adultos a recordarem todas as crianças que foram.

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“Puff, quando acordas de manhã”, disse finalmente Porquito, “qual é a primeira coisa que tu dizes para ti mesmo?”
“O que há para o pequeno-almoço?”, disse Puff. “E tu, que dizes, Porquito?”
“Eu digo: que coisa excitante irá acontecer hoje?”, disse Porquito.
Puff acenou com a cabeça, pensativo. “É a mesma coisa”, disse ele.

“O Coelho é inteligente”, disse Puff pensativamente.
“Sim, o Coelho é inteligente”, disse Porquito.
“ E tem miolos.”
“Sim, o Coelho tem miolos”, disse Porquito.
Fez-se um longo silêncio.
“Acho que é por isso que ele nunca percebe nada”, disse Puff.

“E temos que levar Provisões” , disse Cristóvão Robin. “Levar o quê?”
“Coisas para comer.”
“Ah, disse Puff, muito satisfeito, “pensava que tinhas dito Provisões.”

“Puff, disse Cristóvão Robin, “aonde é que encontraste esse
polo?”
Puff olhou para o pau que tinha nas mãos.
“Encontrei-o para aí”, disse ele. “Achei que era capaz de ser útil. Apanhei-o do chão.”
“Puff”, disse Cristóvão Robin solenemente, “a Expotição está
terminada. Encontraste o Pólo Norte!”
“Oh!”, dise Puff.

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Mi Buenos Aires Querido

«…pienso que nunca me he alejado mucho de ese libro; siento que todos mis otros trabajos sólo han sido desarrollo de los temas que en él toqué por primera vez; siento que toda mi vida ha transcurrido volviendo a escribir ese único libro».
Jorge Luis Borges , sobre O Fervor de Buenos Aires

Jorge Luis Borges.

Editado pela Quetzal, o primeiro volume de poesia de Jorge Luis Borges reúne os livros O Fervor de Buenos Aires (1923), Lua Defronte (1925) e Caderno de San Martín (1929). Escritos já após o seu regresso à Argentina em 1921, depois de uma uma passagem pelo velho continente, a poesia de Borges desvela os contornos de uma cidade reencontrada.
Jorge Luis Borges encanta-nos com a elegância, harmonia e  precisão  com que desenha a geografia poética de Buenos Aires. ‘Lo marginal es lo más bello’, diz-nos, e por isso a sua poesia respira as paisagens urbanas não contaminadas pelo verbalismo: os pátio, as casas, os cafés, os arrabaldes, os ritmos da natureza, os lentos entardeceres, o ocaso, a claridade…
Mas a poesia de Borges transcende o quotidiano, revela já as preocupações metafísicas e humanas do escritor argentino. É o princípio de um caminho filosófico que, sem renunciar a Schopenhauer, a Kant, a Berkeley e a Hume, revela já a sua identidade.
Percorrer as paisagens de Buenos Aires pelos versos do poeta que a eternizou, conhecer os seus caminhos esquecidos e as memórias de quem já não os pisa, é também confundir o tempo, esse que não volta nem tropeça como nos diz Francisco Quevedo, virar-lhe as costas e caminhar, como um rio que escorre no sentido da nascente.

Três poemas escolhidos da Obra Poética de Jorge Luis Borges

O Regresso

No fim dos anos do desterro
voltei à casa da minha infância
e contudo é-me estranho o seu espaço.
As minhas mãos tocaram nas árvores
como quem acarinha alguém que dorme
e repeti velhos caminhos
como se recuperasse um verso esquecido
e vi na tarde cada vez mais límpida
a frágil lua nova
abandonada ao amparo sombrio
da palmeira e das suas altas folhas,
como o pássaro ao ninho.

Que multidão de céus
abarcará o pátio entre os seus muros,
que poentes heroicos
militarão no abismo da rua
e quantas quebradiças luas novas
infundirão ternura a este jardim
antes que a casa volte a conhecer-me
e seja outra vez um hábito!

Poema retirado de Fervor de Buenos Aires (1923)

O Sul

De um de teus pátios ter olhado
as antigas estrelas,
do banco da sombra
ter olhado
essas luzes dispersas
que minha ignorância não aprendeu a nomear
nem a ordenar em constelações,
ter sentido o círculo da água
na secreta cisterna,
o odor do jasmim e da madressilva,
o silêncio do pássaro adormecido,
o arco do saguão, a humidade
essas coisas, acaso, são o poema.

Poema retirado de Fervor de Buenos Aires (1923)

A Minha Vida Inteira

De novo aqui, com os lábios memoráveis, único e semelhante a vós.
Persisti na aproximação da ventura e na intimidade da pena.
Atravessei o mar.
Conheci muitas terras; vi uma mulher e dois ou três homens.
Amei uma menina altiva e branca e de uma hispânica seriedade.
Vi um arrabalde infinito onde se cumpre uma insaciada imortalidade de poentes.
Saboreei numerosas palavras.
Creio profundamente que isso é tudo e que não verei nem executarei coisas novas.
Creio que as minhas jornadas e as minhas noites se igualam em pobreza e riqueza às de Deus e às de todos os homens.

Poema retirado de Lua Defronte (1925)

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Vir ao Mundo

Vir ao Mundo… Um livro que se desdobra e revela como se vai desdobrando e revelando a vida. É da vida que este livro trata. É ela que está lá dentro. A minha, a vossa, a das nossas pessoas. É nelas, nos seus abraços, nos seus ensinamentos e nos seus sorrisos que pensamos quando tocamos neste livro, ou melhor, quando este livro nos toca.

A vida apresenta-se inicialmente a preto e branco, mas com flores que guardam surpresas, mistérios, alegrias, tristezas, tesouros… Cabe-nos tocá-las, abri-las e descobrir-lhes as cores. Ou não. Como na vida, afinal.

Vir ao Mundo de Emma Giuliani é editado em Portugal pela Edicare e foi vencedor da menção do prémio Opera Prima Bologna 2014.

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Oh, Que Lindo é o Panamá

Era uma vez um ursinho
e um tigrezinho que viviam
lá em baixo à beira-rio.
Ali adiante onde se vê o fumo
a subir, ao lado da árvore grande.
E também tinham um barco.
Moravam numa casa pequenina e confortável
que tinha uma chaminé.

Mas um dia apareceu um caixote com bananas a boiar pelo rio adiante.

E o que é que estava escrito no caixote?
– Pa-na-má – leu o ursinho.

Panamá torna-se assim o país dos seus sonhos. “Lá as coisas são todas muito diferentes e muito maiores…” e por isso decidem empreender uma longa viagem para lá chegar. Com uma panela vermelha, um anzol e um patotigre de brincar, iniciam uma caminhada ao longo da qual conhecerão um rato do campo, uma velha raposa, uma vaca, uma lebre, um ouriço-cacheiro e uma gralha.

O ursinho e o tigrezinho simbolizam a essência da amizade, e a viagem à procura do ideal representam a vontade de crescer, a maturidade.

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Janosch, o autor deste maravilhoso livro, é o pseudónimo de Horst Ecker. Marcado por uma infância difícil, começou a trabalhar ainda muito jovem como ferreiro e serralheiro. Depois da II Guerra Mundial, a sua família mudou-se para a Alemanha Ocidental e empregou-se numa fábrica têxtil. Em 1953 foi para Munique e durante uma temporada estudou na Academia de Belas-Artes. Depressa se estabeleceu como artista independente, e em 1960 foi publicado o livro infantil com que iniciou a sua trajetória artística e literária, que conta com mais de 300 obras traduzidas para 70 línguas, pelas quais recebeu inúmeros prémios. A sua fama internacional deve-se a “Oh, que lindo que é o Panamá!”, editado em 1979. Também é autor de algumas novelas para adultos, com elementos autobiográficos, tendo chegado, inclusivamente, a ilustrar textos de escritores célebres, como Charles Bukowski.

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Para fazer o retrato de um pássaro

Para fazer o retrato de um pássaro

Pinta primeiro uma gaiola
com a porta aberta
pinta a seguir
qualquer coisa bonita
qualquer coisa simples
qualquer coisa bela
qualquer coisa útil
para o pássaro.
Agora encosta a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou até numa floresta.
Esconde-te atrás da árvore
sem dizeres nada
sem te mexeres…
Às vezes o pássaro não demora
mas pode também levar anos
antes que se decida.
Não deves desanimar
espera
espera anos se for preciso
a rapidez ou a lentidão da chegada
do pássaro não tem qualquer relação
com o acabamento do quadro.
Quando o pássaro chegar
se chegar
mergulha no mais fundo silêncio
espera que o pássaro entre na gaiola
e quando tiver entrado
fecha a porta devagarinho
com o pincel.
Depois
apaga uma a uma todas as grades
com cuidado não vás tocar nalguma das penas
Faz a seguir o retrato da árvore
escolhendo o mais belo dos ramos
para o pássaro
pinta também o verde da folhagem a frescura do vento
e agora espera que o pássaro se decida a cantar.
Se o pássaro não cantar
é mau sinal
é sinal que o quadro não presta
mas se cantar é bom sinal
sinal de que podes assinar.
Então arranca com muito cuidado
uma das penas do pássaro
e escreve o teu nome num canto do quadro.

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Poema: Jacques Prévert

Livro: Faktoria K de Livros

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A Contadora de Filmes

É encantador na sua simplicidade, como me parecem ao longe ser também as Pampas de Atacama, onde a pobreza, a dureza do trabalho, do tempo e da terra salitreira encontram a beleza dos sonhos.

Esta é a história de María Margarita, uma «fazedora de ilusões», que através das suas narrações de filmes leva novos mundos aos moradores da Mina. Todas as noites Marguerita era tantos outros; todas as noites a sua casa era cenário de aventuras, de guerras, de comédias, de paixões; todas as noites a plateia mineira viajava no tempo e no espaço, imaginava o andar de Marilyn, a postura de Bogart, a voz de Wayne. É assim a magia do cinema. Dá-nos asas e aproxima-nos.

“Uma vez li uma frase – de um autor famoso, certamente – que dizia, mais ou menos, que a vida é feita da mesma matéria de que são feitos os sonhos. Eu digo que a vida pode ser perfeitamente feita da mesma matéria de que são feitos os filmes. Contar um filme é como contar um sonho. Contar uma vida é como contar um sonho ou um filme”, disse a contadora de filmes, cuja vida é tão diferente da do cinema.

Em toda a sua simplicidade A Contadora de Filmes, como é próprio dos grandes livros, é revelador do que somos e de como vivemos, mostrando-nos os conflitos entre a realidade e a imaginação, entre a infância e a vida adulta, a proximidade humana e a tecnologia, o passado e o futuro.

Letelier, outrora também mineiro, é o escritor que “deu nome aos homens que vivem nesse mundo de areia e de sal que é o deserto de Atacama.” Walter Salles

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A literatura por Simone de Beauvoir

“Esta é a vantagem da literatura, pensou ela, levamos as palavras connosco. As imagens murcham, deformam-se, apagam-se. Mas encontrava as palavras de outros tempos na sua garganta, tal como tinham sido escritas. Criavam um elo entre ela e os antigos séculos em que os astros brilhavam exactamente como hoje. Esse renascimento e essa permanência davam-lhe uma sensação de eternidade. A Terra estava gasta; contudo existiam momentos como este em que parecia tão fresca como nas primeiras idades de ouro e em que o presente bastava”.

Simone de Beauvoir, em Mal-entendido em Moscovo, Quetzal.

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Ninguém encontrou nem jamais há-de encontrar (Voltaire)

Editada em 2014 pela Sistema Solar, a Autobiografia de Thomas Bernhard reúne os cinco volumes autobiográficos publicados ao longo de sete anos. São eles A Causa (1975), A Cave (1976), A Respiração (1978), O Frio (1981) e Uma Criança (1982). Por meio deles o autor dá a conhecer a sua infância e a sua juventude, período decisivo para a construção da personalidade, carácter e carreira, numa obra essencialmente literária, em que procura fornecer uma imagem que de certo modo para si próprio criou, adaptando a esse objectivo os acontecimentos narrados. Para Bernhard “o que se descreve torna evidente algo que corresponde, é certo, ao desejo de verdade daquele que descreve, mas não a verdade, pois a verdade não é transmissível.” Conquanto a ideia de revelar uma existência seja ela própria uma falácia, “só o descarado é capaz de agarrar e desempacotar frases e simplesmente atirá-las ao papel, só o mais descarado é autêntico.” E em boa verdade o é, com uma escrita que reflecte sempre solidão, rancor, humilhação, isolamento e doença. Mas também nela existe música. Bernhard, graças ao seu avô, teve lições de violino, música e canto, formação musical que veio, mais tarde, a notar-se na sua obra literária, particularmente na construção rítmica da sua linguagem, na repetição de palavras e frases. São cinco volumes, escritos sem qualquer pejo, que retratam vinte anos de destruição física e espiritual de um escritor que importa conhecer.

“As pessoas são como são e não se podem mudar, como os objectos que as pessoas fizeram e fazem e hão-de fazer. Na natureza não existem diferenças de valores. São sempre só pessoas com todas as suas fraquezas e com toda a sua imundície física e anímica em cada novo dia. É indiferente se alguém desespera com o seu martelo pneumático ou agarrado à sua máquina de escrever. Só as teorias é que estropiam o que afinal é tão claro, as filosofias e as ciências no seu todo, que se interpõe no caminho da clareza com os seus conhecimentos inúteis. Já quase tudo passou, o que agora ainda vem não surpreende porque todas as possibilidades foram ponderadas.”

No primeiro dos seus cinco livros, A Causa, é a vida no internato que constitui o objecto principal da sua narrativa, descrevendo o funcionamento do internato, o Johanneum, como sempre se chamou, antes e depois do fim da guerra, primeiro como uma instituição nacional-socialista e depois como um lar católico, dando a conhecer ao leitor todas as semelhanças existentes entre uma e outra.

O segundo volume, A Cave, começa no momento em que Thomas Bernhard com 16 anos decide “ir na direcção oposta”, e abandona o liceu. A cave era uma mercearia, situada no bairro mais miserável e mal-afamado de Salzburgo, onde irá mais tarde, após uma gripe mal curada, contrair uma doença pulmonar, que o irá afectar para o resto da vida.

A Respiração descreve a sua permanência num hospital de Salzburgo, onde a pleurisia de que sofre se agrava de tal maneira que é colocado na enfermaria dos moribundos. Consegue sobreviver contra todas as expectativas e é durante o internamento, que o seu avô materno, uma das chamadas “pessoas da sua vida”, vem aí a falecer inesperadamente. Mais tarde é descoberto uma sombra no pulmão, o princípio da tuberculose que a seguir o afecta, e que determina o seu envio para o sanatório.

O quarto volume O Frio, mostra-nos a experiência do escritor nesse sanatório, lugar de encontro da segunda das “pessoas da sua vida”. Tal como Hans Castorp em Montanha Mágica, livro de Thomas Mann, aí reflecte sobre as suas origens, infâncias, constituindo já o caminho que conduz ao último volume. “Sentado no cepo, divertia-me a conferir a conta que o meu avô tinha feito, a adicionar os números colocados uns por baixo dos outros, fazia-o como o aprendiz do comércio na loja, com a mesma precisão, com a mesma falta de consideração pelos compradores. Nós entramos na loja da vida e compramos, e temos nós de pagar a conta. Aí o vendedor não se engana.”

No quinto livro, Uma Criança, é a imagem do avô que ressalta, figura tutelar da sua existência, que o marcou indelevelmente. São os dias felizes, os da infância, em que viveu com o avô ou na sua proximidade.

Bernhard morreu aos 58 anos de idade, na sua casa em Gmunden na Alta Áustria. Polémico mesmo após a sua morte, o ressentimento que durante toda a sua vida dedicou à sua pátria manteve-o até no seu testamento, no qual proíbe a encenação das suas peças teatrais em território austríaco. O seu legado literário inclui dezanove romances, dezassete obras teatrais, entre outros livros breves ou autobiográficos. Conta-nos Thomas Bernhard que, não fosse a sua curiosidade sem vergonha e a sua cobardia perante a ideia de suicídio, e a sua vida teria sido bastante mais curta. “Durante toda a minha vida nunca houve nada que eu mais admirasse do que os suicidas. Eles excedem-me em tudo, tudo, pensei eu sempre, não valho nada e estou preso à vida, por mais horrível e mesquinha, mais asquerosa e infame, mais banal e ignóbil que seja.”

Thomas Bernhard é um escritor de génio e o seu descaramento é o martelo pneumático a que ninguém fica indiferente.

Uma frase ficou sempre na minha cabeça: “Toda a nossa vida, se a tomarmos a sério, não é senão uma sórdida agenda de acontecimentos, no fim completamente rasgado.”