Todas as noites representavam a mesma ópera, e todas as noites ele ouvia distintamente as palavras e a música. Mas não dominava a língua. Ainda assim, lá estava ele todas as noites à janela, à escuta. Deste modo se apaixonou por uma das actrizes, sem sequer a ter visto. Nunca o teatro o tinha emocionado tanto como nessa ocasião; a paixão das melodias era para ele como o bater de asas de grandes pássaros sombrios, como se pudesse ver as linhas que o seu voo traçava na sua alma. Não eram paixões humanas o que ouvia, não, eram paixões que saíam voando das pessoas, como de gaiolas demasiado acanhadas e vulgares. Na sua excitação, nunca pensava nas pessoas que, do outro lado, invisíveis, davam corpo a essas paixões; quando tentava imaginá-las, logo via diante de si labaredas escuras, dimensões descomunais como corpos que crescem na escuridão ou olhos humanos que brilham como espelhos de poços muito fundos. O que ele amava nessa altura, sob o nome daquela actriz desconhecida, eram essas chamas sombrias, os olhos no escuro, o bater de asas negras.
Robert Musil, in As Perturbações do Pupilo Törless
Pintura: Louis Soutter The Sun is Blackened (Le Soleil se noircit) 1939