Publicado em

Criança e Flor

Feliz o recém-nascido,
(De acordo com as melhores conjecturas queria referir
Como evolui no mundo a nossa Existência), abençoada a criança,
Acariciada nos braços da Mãe, adormecendo
Embalada no seio materno; ela, com a sua alma,
Bebe as emoções no olhar materno!
Para ela, na Presença única e amada, existe
Uma virtude que irradia e exalta
Os objectos através da mais vasta comunhão dos sentidos.
Não é uma exilada, perplexa e abatida;
Ao longo das suas veias de criança
Misturam-se a gravitação e os laços filiais
Da Natureza que a ligam ao Universo.
Aponta para uma flor ainda com a mão
Demasiado hesitante para a colher, mas para ela
Já é o amor, que, vindo da sua mais pura fonte terrestre,
Tornou bela esta flor; já as sombras
Da piedade que chegam de uma ternura interior
Ficam à sua volta sobre o que traz consigo
As cicatrizes informes da violência e do mal.
Forçosamente tal ser vivo existe,
Por muito frágil que seja, ao mesmo temo frágil e débil,
Ele é um ser deste universo cheio de vida:
O sentimento transmitiu-lhe uma força
Que, através das faculdades crescentes dos sentidos,
Como instrumentos do único e supremo Espírito,
Cria, sendo que cria e quem recebe,
Num trabalho que é a aliança com as obras
Que contempla, Tal é, verdadeiramente, o inicial
Espírito poético na nossa vida humana,
Que, devido à uniforme disciplina dos anos,
Em muitos se torna menor ou é destruído; em alguns,
Mesmo que se altere, por se desenvolver ou não,
Ele domina até à morte.

William Wordsworth, in O Prelúdio

O Prelúdio

Os livros do Arnaldo

Pintura de Albert Anker

Publicado em

O Prelúdio

(…)

Eu era como aquele que se debruça de uma barca
A deslocar-se lentamente sobre o seio
De uma água serena, consolado-se
Com as descobertas que o seu olhar faz
Conforme desce ao fundo do abismo,
E vê tantos espectáculos belos – algas, peixes, flores,
Grutas, seixos, raízes e árvores, e imagina ainda mais,
Muitas vezes perplexo e não conseguindo separar
A sombra da realidade, os rochedos e o céu,
As montanhas e as nuvens, reflectidos na profundeza
Daquele curso límpido, de tudo o que ali vive
No seu verdadeiro lugar; agora a sua visão é atravessada
Pelo reflexo da sua própria imagem, por um raio de sol,
E movimentos ondulantes vindos não se sabe de onde,
Dificuldades que tornam a sua tarefa ainda mais atraente;
Tal é a agradável ocupação que há muito
Prosseguimos, inclinando-nos sobre o passado
Com igual sucesso; e raramente podem surgir
Formas mais belas ou mais nítidas que estas,
Para as quais a minha narrativa, indulgente amigo,
Vem chamar a tua atenção.

(…)

William Wordsworth, in O Prelúdio

O Prelúdio

Os livros do Arnaldo

Publicado em

Poemas Escolhidos, William Wordsworth

A Pequena Celidónia

Há uma flor, a humilde celidónia,
Que encolhe, como tantas, se sujeita
À chuva, ao frio; mas, sem cerimónia,
Se o sol reluz, eis dela a luz à espreita!

Assim que chove em salvas a saraiva
E incide contra árvores e pastos,
Amiúde a vejo, a salvo dessa raiva,
Em si fechada, um Ser de modos castos.

Um dia de invernia dei por ela;
Reconheci-a, embora alterada,
Sozinha, oferecendo-se à procela,
À chuva e à mercê da trovoada.

Parei, e isto disse intimamente,
«Não é que escolha o frio ou o chuvisco:
Nem é por sua opção, por ser valente,
Mas mera condição de quem é prisco.

O sol não a acalenta, nem o orvalho;
Não consegue evitar o abatimento;
Os membros presos, murcha, o tom já falho» –
Sorri, tal qual o meu humor: cinzento.

De Pródiga à pobreza da Reforma –
Encara a tua sorte, mísero Homem!
Que o tempo te subtraia à jovem forma
Somente o que dispense o belo Jovem!

Poemas Escolhidos, de William Wordsworth
selecção, tradução, introdução e notas de Daniel Jonas
Edição: Assírio & Alvim

Poemas Escolhidos