No esboço em prosa que consagrou a Brentano, Walser pergunta: “É possível um homem que sente tanto e tão bem ser ao mesmo tempo tão pouco sentimental?” A resposta teria sido que, na vida como nos contos, há aqueles a quem a extrema pobreza e a angústia torna difícil o sentir e que por isso, como Walser numa das suas mais tristes peças de prosa, são forçados a pôr à prova a sua atrofiada capacidade de amar com substâncias ou coisas a que ninguém liga, as cinzas, uma pena, um lápis e um fósforo. Contudo, o modo como Walser lhes insufla uma alma num acto de absoluta identificação e empatia mostra que os sentimentos mais profundos são talvez os que incidem sobre as coisas mais insignificantes. “De facto”, escreve Walser sobre a cinza, “não é possível dizer sobre este objecto tão desinteressante muita coisa que não seja desinteressante, a não ser mergulhando profundamente, como, por exemplo, assim: se soprarmos as cinzas, não é pequena coisa elas não se dispersarem imediatamente. A cinza é a vera humildade, a vera insignificância e a vera inutilidade e é o que há de mais belo; ela própria está imbuída da crença de que não serve para nada. Pode alguém ser mais inconsistente, fraco e miserável do que a cinza? Não é nada fácil. Haverá coisa mais condescendente e mais tolerante do que ela? Nem por isso. A cinza não tem carácter e está muito mais longe de um qualquer tipo de madeira do que o desânimo da euforia. Onde há cinza, não há praticamente nada. Pousa o pé na cinza e nada te dirá que estás a pisar qualquer coisa”. O clima muito emotivo desta passagem, que não encontra equivalente em toda a literatura alemã do século XX, nem mesmo em Kafka, está em que, aqui, no tratamento quase acidental da cinza, da pena, do lápis e dos fósforos, o escritor, na verdade, trata do seu próprio martírio, pois as quatro coisas de que se ocupa não estão arbitrariamente associadas, antes são os instrumentos de tortura do autor, ou seja, aquilo de que necessita para organizar a sua cremação e o que resta quando o fogo já se extinguiu.
W.G. Sebald, in O Caminhante Solitário