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Um Armário Cheio de Sombra

“As mãos da minha mãe eram grandes. Punha-as na minha testa querendo medir uma febre que talvez não existisse e acostumei-me a sentir juntos o cheiro da lixívia e a ternura. As mãos foram grandes em anos longínquos; não mais tarde, quando descansaram frias sobre a manta vermelha que envolvia as suas pernas. As veias, grossas outrora, tinham desaparecido numa brancura até então inexistente.
Também era difícil reconhecer os seus olhos, que haviam sido ágeis, ainda que parecessem sempre cristalizados no cansaço. Tornaram-se maiores (a sua íris tinha-se dilatado ou as suas pálpebras tinham recuado) e não havia neles escuridão nem sinais de pensamento. Atrás da córnea, inexplicavelmente azul ou sem cor, não sei bem, permanecia um olhar interrogante e quieto. Havia desaparecido a precisão da pupila, mas não o olhar. A transformação das suas mãos e dos seus olhos durou cinco anos, talvez mais. Morreu suavemente, deixando cair com cuidado a cabeça sobre a clavícula esquerda. Estávamos na galeria e sol retirava-se já do frontão branco das casas vizinhas. Eu estava a dar-lhe de comer”

Antonio Gamoneda, em “Um Armário Cheio de Sombra”
Pintura: A Woman Sewing in an Interior, de Vilhelm Hammershoi
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Fábula de um Arquitecto

Fábula de um Arquitecto

A arquitectura como construir portas de abrir,
de abrir, ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e teto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.

2.

Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.

João Cabral de Melo Neto, in A Educação Pela Pedra,
Livros Cotovia

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Pintura: Interior Strandgade | Vilhelm Hammershoi | oil painting

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Enrique Vila-Matas, Vilhelm Hammershoi, Carl Theodor Dreyer

Descobri Hammershoi em “Dublinesca” de Enrique Vila-Matas. Personagem central no romance do escritor catalão, Samuel Riba, o último editor literário, diz: “Sente-se sempre enormemente hipnotizado por este artista dinamarquês. Gosta daqueles quadros onde os mesmos motivos reaparecem uma e outra vez, obsessivamente. Mas parece-lhe que, na arte, o que importa muitas vezes é precisamente isso, a obsessão desenfreada, a presença do maníaco por detrás da obra.” 

Nos quadros de Vilhelm Hammershoi, o pintor está sempre presente, com as suas imagens tenazes às voltas com a sua insistência pelos espaços vazios onde, aparentemente não acontece nada, mas atrás da calma extrema e da imobilidade, sente-se o espreitar de um elemento indefinível e ameaçador. A sua paleta de cores é limitada e dominada pelos tons cinzentos. “É o pintor do que se passa quando não se passa nada. Tudo isso converte os seus interiores em lugares de quietude hipnótica e de introspecção melancólica.”
Um encontro feliz com a pintura de Hammershoi. Mais ainda, quando a descoberta me trouxe ao cinema de Dreyer, de “Ordet” e “Gertrud”, que tanto amo. Percebi então que foram precisamente as suas pinturas de interiores e personagens obscuras e austeras quem influenciou Carl Theodor Dreyer, na sua ideia central de cenografias mínimas, quase despidas, mas sobretudo no que à utilização da luz diz respeito. No percurso de Dreyer, as referências à estética de Hammershoi cruzam-se com as suas próprias interpretações da enfatização dramática do real. O uso da luz nos cenários domésticos, o voyeurismo ao universo do quotidiano feminino e o isolamento no campo visual da personagem central são analogias facilmente reconhecíveis entre os dois dinamarqueses.

Deve ser este então o significado de “o mundo é pequeno”.