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O facto de exigirmos sempre o mais elevado…

“O facto de exigirmos sempre o mais elevado, o mais profundo, o mais fundamental, o mais extraordinário, onde só há o mais ínfimo, o mais superficial e o mais vulgar, torna-nos realmente doentes. Isso não faz progredir o ser humano, pelo contrário, mata-o. Vemos decadência onde deveríamos esperar progresso, vemos desespero onde deveríamos ter esperança, esse é o nosso erro, a nossa infelicidade. Exigimos sempre tudo onde, naturalmente, só se pode exigir um pouco, e isso deprime-nos. Queremos ver o ser humano no lugar mais alto, e ele logo resvala para a decadência; na verdade, queremos alcançar tudo e, realmente, não chegamos a nada. E, naturalmente, fazemos a nós próprios as maiores exigências, maiores do que tudo, e, ao fazê-lo, não tomamos na devida conta a natureza humana que não foi criada para estas exigências máximas, maiores do que tudo. O mundo sobrestima em geral o que é humano. Falhamos sempre porque pusemos a fasquia muitos por cento mais alto do que é próprio para nós. E só vemos, se é que vemos, por toda a parte e para onde quer que o nosso olhar se dirija, falhados que puseram a fasquia alta de mais. Mas, por outro lado, digo a mim próprio, onde iríamos nós parar se puséssemos a fasquia sempre baixo de mais?”

Thomas Bernhard, in Betão

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Adeus e é tudo indiferente

[…] Indiferente. Também para mim tudo era indiferente nesse momento. Uma palavra bonita, clara, impressionante: indiferente. Compreendemo-nos. Ele disse que eu podia ir comer qualquer coisa com ele ao meio-dia e eu fiz um desvio e fui com ele ao Sternbräugarten beber uma cerveja e comer salsichas e pão. Ele tinha imaginado que a sua vida seria algo diferente, quando efectivamente teve de viver, disse ele, não por estas palavras, mas com este sentido. A mim tinha-me acontecido o mesmo. O bairro de Scherzhauserfeld e, no seu centro, o Karl Podlaha tinham ressuscitado. Recordámos muita coisa. Adeus e é tudo indiferente, disse ele a terminar, como se eu o tivesse dito. A minha marca especial hoje é a indiferença e a consciência da equivalência de tudo o que já foi e que é e que será. Não há valores altos e mais altos e altíssimos. Tudo isso acabou. As pessoas são como são e não se podem mudar, como os objectos que as pessoas fizeram e fazem e hão-de fazer. Na natureza não existem diferenças de valores. São sempre só pessoas com todas as suas fraquezas e com toda a sua imundície física e anímica em cada novo dia. É indiferente se alguém desespera com o seu martelo pneumático ou agarrado à sua máquina de escrever. Só as teorias é que estropiam o que afinal é tão claro, as filosofias e as ciências no seu todo, que se interpõem no caminho da clareza com os seus conhecimentos inúteis. Já quase tudo passou, o que agora ainda vem não surpreende, porque todas as possibilidades foram ponderadas. Aquele que fez tanta coisa errada e irritou e perturbou e destruiu e aniquilou e se esforçou imenso e estudou e muitas vezes se exauriu e quase se matou e se enganou e se envergonhou e de outra vez não se envergonhou há-de, no futuro, enganar-se e fazer muita coisa errada e irritar e perturbar e destruir e aniquilar e esforçar-se imenso e estudar e exaurir-se e quase se matar e continuar tudo isso até ao fim. Mas, em última análise, é tudo indiferente. As cartas são postas a descoberto, pouco a pouco. A ideia era desvendar a existência, a própria e as outras. Nós reconhecemo-nos em cada pessoa, seja ela quem for, e estamos condenados a ser cada uma dessas pessoas enquanto existirmos. Somos todos essas existências e existentes juntos e andamos à nossa procura e no fim não nos encontramos, por mais insistente que seja o nosso esforço nesse sentido. Sonhámos com a sinceridade e a clareza, mas não passámos do sonho. Muitas vezes desistimos e recomeçámos e voltaremos ainda muitas vezes a desistir e a recomeçar. Mas é tudo indiferente. O homem do bairro de Scherzhauserfeld com o seu martelo pneumático deu-me o meu mote, de que tudo é indiferente. É  a essência da natureza, de que tudo é indiferente. Adeus e é tudo indiferente, foram as suas palavras, que eu oiço reiteradamente, as suas palavras, embora as suas sejam também as minhas e embora eu próprio tenha dito muitas vezes Adeus e é tudo indiferente. Mas tinha de ser dito nessa altura. Eu já o tinha esquecido. Nós estamos condenados a uma vida, e isso significa a vida inteira, por um ou por muitos crimes, quem sabe?, que não cometemos ou que voltamos a cometer, por outros depois de nós. Não nos chamámos a nós próprios, subitamente encontrámo-nos aqui e logo nesse momento nos consideraram responsáveis. Tornámo-nos resistentes, já nada nos pode deitar abaixo, já não nos agarramos a vida, mas também não a desbaratamos, queria eu dizer, mas não o disse. Por vezes levantamos todos a cabeça e julgamos que temos de dizer a verdade ou a aparência da verdade e baixamos de novo a cabeça. E é tudo.[…]

Autobiografia, Tomas Bernhard, Sistema Solar

Pintura: Man under a Pyramid 1996 Anselm Kiefer

Autobiografia

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Ninguém encontrou nem jamais há-de encontrar (Voltaire)

Editada em 2014 pela Sistema Solar, a Autobiografia de Thomas Bernhard reúne os cinco volumes autobiográficos publicados ao longo de sete anos. São eles A Causa (1975), A Cave (1976), A Respiração (1978), O Frio (1981) e Uma Criança (1982). Por meio deles o autor dá a conhecer a sua infância e a sua juventude, período decisivo para a construção da personalidade, carácter e carreira, numa obra essencialmente literária, em que procura fornecer uma imagem que de certo modo para si próprio criou, adaptando a esse objectivo os acontecimentos narrados. Para Bernhard “o que se descreve torna evidente algo que corresponde, é certo, ao desejo de verdade daquele que descreve, mas não a verdade, pois a verdade não é transmissível.” Conquanto a ideia de revelar uma existência seja ela própria uma falácia, “só o descarado é capaz de agarrar e desempacotar frases e simplesmente atirá-las ao papel, só o mais descarado é autêntico.” E em boa verdade o é, com uma escrita que reflecte sempre solidão, rancor, humilhação, isolamento e doença. Mas também nela existe música. Bernhard, graças ao seu avô, teve lições de violino, música e canto, formação musical que veio, mais tarde, a notar-se na sua obra literária, particularmente na construção rítmica da sua linguagem, na repetição de palavras e frases. São cinco volumes, escritos sem qualquer pejo, que retratam vinte anos de destruição física e espiritual de um escritor que importa conhecer.

“As pessoas são como são e não se podem mudar, como os objectos que as pessoas fizeram e fazem e hão-de fazer. Na natureza não existem diferenças de valores. São sempre só pessoas com todas as suas fraquezas e com toda a sua imundície física e anímica em cada novo dia. É indiferente se alguém desespera com o seu martelo pneumático ou agarrado à sua máquina de escrever. Só as teorias é que estropiam o que afinal é tão claro, as filosofias e as ciências no seu todo, que se interpõe no caminho da clareza com os seus conhecimentos inúteis. Já quase tudo passou, o que agora ainda vem não surpreende porque todas as possibilidades foram ponderadas.”

No primeiro dos seus cinco livros, A Causa, é a vida no internato que constitui o objecto principal da sua narrativa, descrevendo o funcionamento do internato, o Johanneum, como sempre se chamou, antes e depois do fim da guerra, primeiro como uma instituição nacional-socialista e depois como um lar católico, dando a conhecer ao leitor todas as semelhanças existentes entre uma e outra.

O segundo volume, A Cave, começa no momento em que Thomas Bernhard com 16 anos decide “ir na direcção oposta”, e abandona o liceu. A cave era uma mercearia, situada no bairro mais miserável e mal-afamado de Salzburgo, onde irá mais tarde, após uma gripe mal curada, contrair uma doença pulmonar, que o irá afectar para o resto da vida.

A Respiração descreve a sua permanência num hospital de Salzburgo, onde a pleurisia de que sofre se agrava de tal maneira que é colocado na enfermaria dos moribundos. Consegue sobreviver contra todas as expectativas e é durante o internamento, que o seu avô materno, uma das chamadas “pessoas da sua vida”, vem aí a falecer inesperadamente. Mais tarde é descoberto uma sombra no pulmão, o princípio da tuberculose que a seguir o afecta, e que determina o seu envio para o sanatório.

O quarto volume O Frio, mostra-nos a experiência do escritor nesse sanatório, lugar de encontro da segunda das “pessoas da sua vida”. Tal como Hans Castorp em Montanha Mágica, livro de Thomas Mann, aí reflecte sobre as suas origens, infâncias, constituindo já o caminho que conduz ao último volume. “Sentado no cepo, divertia-me a conferir a conta que o meu avô tinha feito, a adicionar os números colocados uns por baixo dos outros, fazia-o como o aprendiz do comércio na loja, com a mesma precisão, com a mesma falta de consideração pelos compradores. Nós entramos na loja da vida e compramos, e temos nós de pagar a conta. Aí o vendedor não se engana.”

No quinto livro, Uma Criança, é a imagem do avô que ressalta, figura tutelar da sua existência, que o marcou indelevelmente. São os dias felizes, os da infância, em que viveu com o avô ou na sua proximidade.

Bernhard morreu aos 58 anos de idade, na sua casa em Gmunden na Alta Áustria. Polémico mesmo após a sua morte, o ressentimento que durante toda a sua vida dedicou à sua pátria manteve-o até no seu testamento, no qual proíbe a encenação das suas peças teatrais em território austríaco. O seu legado literário inclui dezanove romances, dezassete obras teatrais, entre outros livros breves ou autobiográficos. Conta-nos Thomas Bernhard que, não fosse a sua curiosidade sem vergonha e a sua cobardia perante a ideia de suicídio, e a sua vida teria sido bastante mais curta. “Durante toda a minha vida nunca houve nada que eu mais admirasse do que os suicidas. Eles excedem-me em tudo, tudo, pensei eu sempre, não valho nada e estou preso à vida, por mais horrível e mesquinha, mais asquerosa e infame, mais banal e ignóbil que seja.”

Thomas Bernhard é um escritor de génio e o seu descaramento é o martelo pneumático a que ninguém fica indiferente.

Uma frase ficou sempre na minha cabeça: “Toda a nossa vida, se a tomarmos a sério, não é senão uma sórdida agenda de acontecimentos, no fim completamente rasgado.”