[…] Indiferente. Também para mim tudo era indiferente nesse momento. Uma palavra bonita, clara, impressionante: indiferente. Compreendemo-nos. Ele disse que eu podia ir comer qualquer coisa com ele ao meio-dia e eu fiz um desvio e fui com ele ao Sternbräugarten beber uma cerveja e comer salsichas e pão. Ele tinha imaginado que a sua vida seria algo diferente, quando efectivamente teve de viver, disse ele, não por estas palavras, mas com este sentido. A mim tinha-me acontecido o mesmo. O bairro de Scherzhauserfeld e, no seu centro, o Karl Podlaha tinham ressuscitado. Recordámos muita coisa. Adeus e é tudo indiferente, disse ele a terminar, como se eu o tivesse dito. A minha marca especial hoje é a indiferença e a consciência da equivalência de tudo o que já foi e que é e que será. Não há valores altos e mais altos e altíssimos. Tudo isso acabou. As pessoas são como são e não se podem mudar, como os objectos que as pessoas fizeram e fazem e hão-de fazer. Na natureza não existem diferenças de valores. São sempre só pessoas com todas as suas fraquezas e com toda a sua imundície física e anímica em cada novo dia. É indiferente se alguém desespera com o seu martelo pneumático ou agarrado à sua máquina de escrever. Só as teorias é que estropiam o que afinal é tão claro, as filosofias e as ciências no seu todo, que se interpõem no caminho da clareza com os seus conhecimentos inúteis. Já quase tudo passou, o que agora ainda vem não surpreende, porque todas as possibilidades foram ponderadas. Aquele que fez tanta coisa errada e irritou e perturbou e destruiu e aniquilou e se esforçou imenso e estudou e muitas vezes se exauriu e quase se matou e se enganou e se envergonhou e de outra vez não se envergonhou há-de, no futuro, enganar-se e fazer muita coisa errada e irritar e perturbar e destruir e aniquilar e esforçar-se imenso e estudar e exaurir-se e quase se matar e continuar tudo isso até ao fim. Mas, em última análise, é tudo indiferente. As cartas são postas a descoberto, pouco a pouco. A ideia era desvendar a existência, a própria e as outras. Nós reconhecemo-nos em cada pessoa, seja ela quem for, e estamos condenados a ser cada uma dessas pessoas enquanto existirmos. Somos todos essas existências e existentes juntos e andamos à nossa procura e no fim não nos encontramos, por mais insistente que seja o nosso esforço nesse sentido. Sonhámos com a sinceridade e a clareza, mas não passámos do sonho. Muitas vezes desistimos e recomeçámos e voltaremos ainda muitas vezes a desistir e a recomeçar. Mas é tudo indiferente. O homem do bairro de Scherzhauserfeld com o seu martelo pneumático deu-me o meu mote, de que tudo é indiferente. É a essência da natureza, de que tudo é indiferente. Adeus e é tudo indiferente, foram as suas palavras, que eu oiço reiteradamente, as suas palavras, embora as suas sejam também as minhas e embora eu próprio tenha dito muitas vezes Adeus e é tudo indiferente. Mas tinha de ser dito nessa altura. Eu já o tinha esquecido. Nós estamos condenados a uma vida, e isso significa a vida inteira, por um ou por muitos crimes, quem sabe?, que não cometemos ou que voltamos a cometer, por outros depois de nós. Não nos chamámos a nós próprios, subitamente encontrámo-nos aqui e logo nesse momento nos consideraram responsáveis. Tornámo-nos resistentes, já nada nos pode deitar abaixo, já não nos agarramos a vida, mas também não a desbaratamos, queria eu dizer, mas não o disse. Por vezes levantamos todos a cabeça e julgamos que temos de dizer a verdade ou a aparência da verdade e baixamos de novo a cabeça. E é tudo.[…]
Autobiografia, Tomas Bernhard, Sistema Solar
Pintura: Man under a Pyramid 1996 Anselm Kiefer
Autobiografia