Publicado em

Carta de Joseph Roth a Gustav Kiepenheuer

(…)Escrevia artigos absolutamente estúpidos e, consequentemente, ganhei nome. Escrevia maus livros e tornei-me conhecido. Por duas vezes fui rejeitado por Kiepenheuer. Ele ter-me-ia rejeitado pela terceira vez, se entretanto não nos tivéssemos conhecido.
Bebemos uma aguardente num domingo. Ele sentiu-se mal. Os dois ficámos doentes por a termos bebido. Declarámos amizade por uma questão de compaixão, apesar da diferença das nossas naturezas, que só se harmonizam no álcool. Kiepenheuer é um vestfaliano e eu ostfaliano. Dificilmente se consegue imaginar um contraste maior. Ele é um idealista, eu sou céptico. Ele ama os judeus, eu não. Ele é um adepto de progresso, eu sou um reacionário. Ele está sempre jovem, eu estou sempre velho. Ele vai fazer cinquenta anos, eu duzentos. Eu podia ser seu bisavô, se não fosse seu irmão. Eu sou radical, ele é conciliante. Ele é gentilmente indeterminado, eu sou conciso. Ele é justo, eu sou injusto. Ele é optimista, eu sou pessimista.
Deve certamente haver ligações secretas entre nós os dois. Pois, por vezes estamos de acordo com tudo. É como se fizéssemos mutuamente concessões, mas não há concessões nenhumas. Pois, ele não tem nenhuma sensibilidade para o dinheiro. Partilhamos os dois esta característica. É o homem mais cavalheiro que conheço. Eu também, Isso tem ele de mim. Ele perde dinheiro com os meus livros. Eu também. Ele acredita em mim. Eu também. Ele aguarda o meu sucesso. Eu também. Ele está confiante na posteridade. Eu também.
Somos inseparáveis; é a qualidade dele.

Joseph Roth, 1930

Gustav Kiepenheuer (1880-1949), editor alemão que fundou em 1909 a editora Gustav Kiepenheuer Verlag

https://www.flaneur.pt/produto/fuga-sem-fim/

Publicado em

Adeus e é tudo indiferente

[…] Indiferente. Também para mim tudo era indiferente nesse momento. Uma palavra bonita, clara, impressionante: indiferente. Compreendemo-nos. Ele disse que eu podia ir comer qualquer coisa com ele ao meio-dia e eu fiz um desvio e fui com ele ao Sternbräugarten beber uma cerveja e comer salsichas e pão. Ele tinha imaginado que a sua vida seria algo diferente, quando efectivamente teve de viver, disse ele, não por estas palavras, mas com este sentido. A mim tinha-me acontecido o mesmo. O bairro de Scherzhauserfeld e, no seu centro, o Karl Podlaha tinham ressuscitado. Recordámos muita coisa. Adeus e é tudo indiferente, disse ele a terminar, como se eu o tivesse dito. A minha marca especial hoje é a indiferença e a consciência da equivalência de tudo o que já foi e que é e que será. Não há valores altos e mais altos e altíssimos. Tudo isso acabou. As pessoas são como são e não se podem mudar, como os objectos que as pessoas fizeram e fazem e hão-de fazer. Na natureza não existem diferenças de valores. São sempre só pessoas com todas as suas fraquezas e com toda a sua imundície física e anímica em cada novo dia. É indiferente se alguém desespera com o seu martelo pneumático ou agarrado à sua máquina de escrever. Só as teorias é que estropiam o que afinal é tão claro, as filosofias e as ciências no seu todo, que se interpõem no caminho da clareza com os seus conhecimentos inúteis. Já quase tudo passou, o que agora ainda vem não surpreende, porque todas as possibilidades foram ponderadas. Aquele que fez tanta coisa errada e irritou e perturbou e destruiu e aniquilou e se esforçou imenso e estudou e muitas vezes se exauriu e quase se matou e se enganou e se envergonhou e de outra vez não se envergonhou há-de, no futuro, enganar-se e fazer muita coisa errada e irritar e perturbar e destruir e aniquilar e esforçar-se imenso e estudar e exaurir-se e quase se matar e continuar tudo isso até ao fim. Mas, em última análise, é tudo indiferente. As cartas são postas a descoberto, pouco a pouco. A ideia era desvendar a existência, a própria e as outras. Nós reconhecemo-nos em cada pessoa, seja ela quem for, e estamos condenados a ser cada uma dessas pessoas enquanto existirmos. Somos todos essas existências e existentes juntos e andamos à nossa procura e no fim não nos encontramos, por mais insistente que seja o nosso esforço nesse sentido. Sonhámos com a sinceridade e a clareza, mas não passámos do sonho. Muitas vezes desistimos e recomeçámos e voltaremos ainda muitas vezes a desistir e a recomeçar. Mas é tudo indiferente. O homem do bairro de Scherzhauserfeld com o seu martelo pneumático deu-me o meu mote, de que tudo é indiferente. É  a essência da natureza, de que tudo é indiferente. Adeus e é tudo indiferente, foram as suas palavras, que eu oiço reiteradamente, as suas palavras, embora as suas sejam também as minhas e embora eu próprio tenha dito muitas vezes Adeus e é tudo indiferente. Mas tinha de ser dito nessa altura. Eu já o tinha esquecido. Nós estamos condenados a uma vida, e isso significa a vida inteira, por um ou por muitos crimes, quem sabe?, que não cometemos ou que voltamos a cometer, por outros depois de nós. Não nos chamámos a nós próprios, subitamente encontrámo-nos aqui e logo nesse momento nos consideraram responsáveis. Tornámo-nos resistentes, já nada nos pode deitar abaixo, já não nos agarramos a vida, mas também não a desbaratamos, queria eu dizer, mas não o disse. Por vezes levantamos todos a cabeça e julgamos que temos de dizer a verdade ou a aparência da verdade e baixamos de novo a cabeça. E é tudo.[…]

Autobiografia, Tomas Bernhard, Sistema Solar

Pintura: Man under a Pyramid 1996 Anselm Kiefer

Autobiografia