Publicado em

Furor e Mistério, René Char

Tinha onze ou doze anos, quando aquilo a que chamava o grandíssimo relâmpago se abateu sobre mim pela primeira vez; tudo o resto deixou de ter importância. O dia não ilumina, só existem a noite e a claridade, mas essa claridade vem da noite, é o grandíssimo relâmpago. Só cintila de tempos a tempos, um número restrito de vezes durante uma vida, mas em cada relâmpago vislumbramos algo mais do que aqueles que só vêem durante o dia. Mesmo que depois o relâmpago ainda torne mais obscura a obscuridade que lhe sucede.

René Char

Basta de Escavar

Basta de escavar, de dilapidar a nossa mais próxima parte.
O pior está em todos nós, caçador, no nosso flanco. Vós que aqui não sois mais do que uma pá levantada pelo tempo, voltai-vos sobre o meu amor, que soluça a meu lado, e despedaçai-nos, peço-vos, fazei-me morrer de uma vez por todas.

René Char, in Furor e Mistério

Um Pássaro…

Um pássaro canta sobre um fio
Essa vida simples, à flor da terra.
Com isso se alegra o nosso Inferno.

Depois o vento começa a sofrer
E as estrelas dão-se conta.

Ó loucas, por percorrerem
Uma tão profunda fatalidade!

René Char, in Furor e Mistério

 

Pintura: Reflexão, de Odilon Redon

Furor e Mistério

Publicado em

Jacquemard e Júlia – René Char

Outrora, no momento em que as estradas se harmonizavam no seu declínio, a erva erguia ternamente as suas hastes e alumiava as suas claridades. Os cavaleiros diurnos nasciam ao olhar do seu amor e os castelos das bem-amadas contavam tantas janelas como no seio do abismo as ténues tempestades.
Outrora a erva conhecia mil insígnias que não se contrariavam. Era a providência dos rostos banhados de lágrimas. Encantava os animais e abrigava o erro. E era tão extensa como o céu que venceu o medo do tempo e reduziu a dor.
Outrora a erva era bondosa para os loucos e hostil para o carrasco, ligava-se em renovado amor ao limiar de sempre, inventava jogos palpitantes de asas no sorriso (tão perdoados quão fugitivos jogos…), não era dura para os que tendo perdido o caminho o desejassem perdido para sempre.
Outrora a erva tinha estabelecido que a noite vale menos que o seu poder, que as nascentes não complicam por capricho o seu percurso, que o grão ajoelhado está já a meio caminho do bico do pássaro. Outrora terra e céu odiavam-se, mas terra e céu viviam.
A inextinguível secura escoa-se. O homem é um estrangeiro para a aurora. No entanto, a caminho da vida que não pode ser ainda imaginada, há vontades que fremem, murmúrios que vão afrontar-se e crianças sãs e salvas – que descobrem.

Pintura: Narcisse-Virgile Diaz de la Peña