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Ana Vila Pouca tem mesmo Uma Vida à sua Frente

Uma Vida à Sua Frente de Romain Gary é narrado na primeira pessoa por Mohammed (Momo), um rapaz muçulmano de 14 anos, órfão, que vive no sexto andar de um prédio sem elevador no bairro pobre de Belleville com Madame Rosa, prostituta reformada e sobrevivente do Holocausto. Momo partilha a casa com outros órfãos, que vê chegar e partir, todos ao cuidado da mesma senhora, que dedica a sua vida a criar crianças ilegítimas de prostitutas das ruas de Paris.

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Num ambiente multi-cultural, multi-étnico e até burlesco, tão característico da obra de Gary, vemos várias vidas a serem vividas à nossa frente. E assim sendo, tal como na vida, experienciamos risos, dores, tristezas, esperanças. É sobretudo esperança que este livro nos oferece. Na amizade, no amor e na paz, tão preciosos durante a vida e até no momento da morte. E assim, quando a devoção e a solidariedade são maiores do que as diferenças, o que vemos são as pessoas. Nada mais importa.

Por isso, acredito que este é um livro que nos ajuda a viver a vida à nossa frente.

 

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Ana Vila Pouca
Local da fotografia: Livraria Déjà Lu, Cascais

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Santiago e o Prazer da Leitura

Ai, que prazer, ter um livro para ler… E lê-lo de pé, enquanto se espera pela abertura da livraria Casa del Libro. Santiago lê nada mais nada menos que “O Prazer da Leitura” de Marcel Proust. Escrito para o prefácio de Sésamo e Lírios de John Ruskin, este texto apresenta os pontos de vista de Proust sobre o lugar que os livros devem ocupar na actividade criativa e o seu papel limitado, mas insubstituível, na vida.

“Na leitura, a amizade é subitamente reduzida à sua primeira pureza.”

“Não há talvez dias da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aqueles que julgámos passar sem tê-los vivido, aqueles que passámos com um livro preferido.” Proust

11716019_10152941185251931_1786865497_nLocal da fotografia: Passeig de Gràcia, Barcelona. Por Edite Amorim, a quem agradecemos a recordação.

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Hugo Mamede e o Barão

“Chego a este livro depois ter visto a magnífica adaptação para cinema de O Barão, realizado por Edgar Pêra e protagonizado por um assombroso Nuno Melo, num dos melhores papéis em que alguma vez o vi. O fascínio foi tão grande que fui a uma livraria pedir de encomenda o texto original, escrito por Branquinho da Fonseca, nome que ninguém tem e que me soa a fantasma ou a caiador de paredes, sei lá, acontece apenas que o nome passou a estar-me na ponta da língua e quero obrigar todos os meus amigos a lê-lo.

O Barão é um conto sobre um inspector de escolas da instrução primária que se vê escravo do trabalho, não gosta do que faz apesar do prestígio, e ainda por cima é obrigado a viajar por todo o lado quando o que precisa é de estar quieto num sítio. Numa viagem de trabalho a uma aldeia recebe a imensa hospitalidade do Barão, um homem rico exilado na sua grande propriedade, e que será talvez um seu semelhante em solidão, que vive no sedentarismo e monotonia tão cobiçados e que é uma figura de enorme extravagância e palavras autoritárias, quase como um déspota ou um tirano desesperado por alguém com quem conversar. Sem dar por isso o inspector vai-se deixando apoderar pelo Barão durante a noite alucinada que aceita passar em sua companhia, obrigado a ouvir confidências incríveis, às vezes marcadas por um grande sentimentalismo, às vezes por tiradas políticas que roçam a irresponsabilidade. A noite avança e o Barão vai-se assemelhando cada vez mais a uma figura paranormal, quando afirma de maneira enigmática que nunca come, só bebe, quando através da visão perturbada pelo álcool o inspector começa a ver nele uma fantasmagórica criatura que por um bocadinho não se revela um vampiro ou um monstro qualquer de uma história fantástica pronto a derramar sangue. Mas isto nunca mais acontece, e a nossa ansiedade cresce porque parece uma inevitabilidade face a tão estranho e necessitado homem.

A noite dos dois acaba por se transformar numa espécie de pesadelo embrenhado nas névoas do álcool, que a escrita tão límpida e castiça faz o favor de sublinhar. E no fim de contas o Barão pode ser o monstro sanguinário por revelar ou o romântico infantil caído numa extrema solidão. E assim fica o inspector ao serviço do Estado num desnorteamento de não lhe ser permitido usar da razão para avaliar a sua situação, já que não consegue rejeitar a hospitalidade do Barão nem fazer-lhe ver que a sua postura excêntrica o perturba. Ficam os dois reduzidos ao mínimo que há em cada um deles, a sua humanidade possível.

Uma maravilha.”

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Hugo Mamede, 25 anos, contista, revisor, comunicador, flâneur.

Local da fotografia: Cinemateca Portuguesa

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Cristiana Afonso e a Senhora Clap

“A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos” é a estória de uma investigadora de aplausos, mestre em Aplausologia, que guarda nas mãos a emoção de um aplauso sentido e transparente. Se por estes dias tiverem vontade de comprar um livro, comprem este. Porque cada palavra se agarra ao coração e fica lá dentro a sorrir. Sintam só:

“Aquelas palmas, tão sinceras e sentidas, chegavam como seiva, também a quem não estava no palco. Chegavam aos bastidores, aos camarins, aos autores, aos figurinistas e cenógrafos, aos electricistas, aos sonoplastas, aos bilheteiros e arrumadores, a todos; como se todos fossem um só coração gigante, convergente e feliz. Chegada a casa, uma vez mais sem sono e absolutamente rendida ao teatro, a Senhora Clap anotou:
252. As palmas chamam pelas pessoas. No teatro nota-se mais.
253. Nunca devemos conter a vontade de bater palmas.
254. Apesar de não ser habitual, podemos bater palmas no cinema.
255. As palmas, muitas vezes, também são para quem não está visível.”
Acho que não estarei enganada ao pensar que cada um de vocês que chegar à última página do livro desatará num aplauso imenso, de mãos e olhos abertos, na certeza de que faltava um texto assim. Faltava que alguém ousasse falar de palmas como quem fala de amor porque, diz a Senhora Clap, “amar é bater palmas” e como é que poderia não ser assim?
É vosso também. Façam o favor de aplaudir.

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Cristiana Afonso, 26 anos, assessora de comunicação

Local da fotografia: Café Progresso

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Ricardo Andrade e o Mundos Distantes

“Ficção especulativa; sempre foi de onde sairam meus livros preferidos. Já tive minha fase de querer ler tudo do Isaac Asimov, Arthur Conan Doyle, Margareth Weiss e hoje estou no aguardo do próximo livro de Patrick Rothfuss e em paralelo diálogo com o Geoge R. R. Martin. Não que os autores anteriores, e outros tantos, tenham perdido meu interesse, mas, como todo leitor, sou meio turista de mundos e colecionador de lembranças de fatos que vivi pela leitura.
As estórias de Mundos Distantes 1 são exatamente destinadas a turistas e colecionadores do fantástico. Você experimenta mundos diferentes, distantes como diz o título, sendo rapidamente transportado para novos ambientes e novos personagens – sem sair da perspectiva da ficção fantástica ou científica.
Mundos Distantes 1 apresenta quatro universos diferentes: começa em um pub, onde se encontra um irlandês forjado pela guerra; em seguida, dois aventureiros enfrentando um escaldante deserto são acompanhados de perto; depois, viaja-se até um futuro espacial com mistérios a serem desvendados pelo protagonista investigador; e, por fim, atravessa-se um território inóspito, porém mágico, destinado a ser explorado por um decadente rei. Cada conto é escrito por um autor diferente.
De um lugar onde as coisas são resolvidas no fio da espada, percorri um deserto escaldante com beduínos, passei por uma trupe maltrapilha na qual se percebia ter algo de nobre e acabo em uma estação espacial com seres diferentes, em um sabor aproximado ao de Star Wars, nesse sentido.”

Ricardo Sodré Andrade, 32 anos, estudante que imagina ser várias coisas, dependendo do livro que estiver a ler.

O local: Jardins do Palácio de Cristal, o sítio de que mais gosta no Porto, cidade onde escolheu viver há dois anos.

O livro do Ricardo pode ser comprado aqui: Flâneur

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Patrícia Moreira e a Nobreza de Espírito

“A Nobreza de Espírito é certamente um dos mais notáveis e especiais livros que podemos ler e sinto que é nosso dever enquanto pessoas partilhá-lo com os outros. Este tratado filosófico, ao alcance de todos, foi escrito pelo filósofo holandês Rob Riemen e é um guia para nos orientar entre os grandes problemas políticos, culturais e sociais do nosso tempo e até da nossa condição humana. Partindo da ética e da nobreza de espírito na vida e na obra de Thomas Mann, Espinosa, Goethe e Walt Whitman, Rob Riemen apresenta-nos a vida como uma demanda da verdade, do amor, da beleza e da liberdade. «É a vida como a arte de nos tornarmos humanos através do culto da alma humana», escreve Riemen. E como podemos alcançar a nobreza de espírito, a dignidade humana? Para Thomas Mann «somente a educação liberal, a ética, a religião e a arte nos podem guiar nessa demanda». Para Espinosa a «verdadeira felicidade só pode existir na sabedoria e conhecimento a respeito pela verdade e esse conhecimento só pode ser alcançado através do intelecto humano».
Rementendo-nos para a afirmação de Marx de que «não basta interpretar o mundo, é necessário transformá-lo», Rob Riemen defende na sua Nobreza de Espírito que «não basta interpretar o mundo, nem sequer transformá-lo; antes de começarmos pelo mundo, devemos começar por nós».
E podemos começar com a leitura deste livro.”

Patrícia Moreira
Local da fotografia: Jardim das Virtudes, o seu sítio favorito no Porto.

O livro da Patrícia pode ser comprado aqui: Flâneur

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Luís, Félix e Afonso Cruz

“Há dois livros do Afonso Cruz na minha lista de livros favoritos, este é um deles. Tenho-o sempre na mesinha da sala para eu e as pessoas da minha vida folhearmos. É um refúgio que sabe bem pegar e ler uma ou outra parte novamente. Humanidade, ingenuidade, ironia e imaginação em formato de um diário de uma menina que começou a ser escrito num dia 30 de Fevereiro. Nele, leio muito mais que as palavras escritas, leio o sol de Primavera da minha infância, leio a imaginação infantil que ainda tenho, leio também o lado bonito dos dias. O dia ao que mais volto é o 1 de Maio, que me diz “Todos os dias faço coisas estranhas, pois tenho medo do Instituto das Pessoas Normais.”, folheio-o mais um pouco, cheiro-o e pouso-o na mesinha. Foi-me oferecido no dia que, por façanha do acaso, comentei que este livro não se compra, mas que se recebe de presente. Não me lembro o dia ao certo, mas deve ter sido dia 30 de Fevereiro.”
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Luís Félix, livreiro, escultor e designer (Ignoto – https://www.facebook.com/ignotodesign) e Félix, gato.
Local da fotografia: Casa dos Félix-Branco, um dos mais bonitos sítios do Porto.
O livro do Luís pode ser comprado aqui: Flâneur
 
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Paulo Ponte e Voltaire

“Este é um livro sobre a tolerância e sobre a inteligência ou até mesmo a sabedoria. Há uma relação simbiótica entre elas. O Tratado sobre a Tolerância, escrito no século XVIII, tem por base um acontecimento real ocorrido em Toulouse: Jean Calas, protestante, foi injustamente acusado de ter assassinado o seu próprio filho por, alegadamente, ter decidido converter-se ao catolicismo. Calas foi julgado, condenado e executado num ambiente de grande exaltação popular, que chocou Voltaire, um dos maiores representantes do espírito do Iluminismo. Mas este é apenas o ponto de partida para a defesa de um valor maior universal: a tolerância em relação às ideias, formas de vida, actos e convicções dos outros. Isto não é mais do que a fraternidade, tão almejada ainda nos dias de hoje.

A leitura deste livro tem constituído uma óptima experiência, havendo uma identificação entre os meus valores e os valores aqui defendidos: a tolerância, que só existe com a sabedoria, por oposição ao fanatismo que nasce da ignorância, caminho para a liberdade e autonomia individual.”

Paulo Ponte, a ler “O Tratado sobre a Tolerância” de Voltaire (Relógio d’Água) na esplanada da Casa Agrícola, um lugar que é para si uma casa.

O livro do Paulo pode ser comprado aqui: Flâneur

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Vítor Teves entre a arte e a poesia com Mirleos

“O meu hábito de anotar a data nos poemas que vou lendo, diz-me que li “Mirleos” entre os dias 10 e 20 de Abril, mas tenho regressado ao livro, mais umas quantas vezes, desde que o comprei. Quanto mais leio João Miguel Fernandes Jorge mais gosto e mais fico intrigado com a sua poesia. Descobri-o pelos meus 22 anos e trouxe-o comigo quando vim estudar para o Porto História de Arte. “O regresso dos remadores” (1982) foi a minha companhia nas duas horas de avião entre Ponta Delgada e o Porto. O que me prendeu na poesia de João Miguel Fernandes Jorge foi a ligação direta com a Arte, nunca tinha lido nenhum poema, até à data, com o título “Richard Long” ou “Dan Flavin”. Ninguém ao meu redor conhecia Dan Flavin em 2005, quer em S.Miguel, quer no Porto, mas alguém havia já escrito em 1982 um poema a Dan Flavin: João Miguel Fernandes Jorge. Tenho muitas reticências em comentar a poesia de João Miguel Fernandes Jorge, porque os 7 ou 8 livros que li ainda estão longe da dimensão de toda a poesia do poeta e porque creio que a complexidade, beleza, conteúdo, dimensão poética, pertinência, ultrapassa qualquer pequeno comentário que eu possa fazer. Contudo, creio que JMFJ, tal como Baudelaire, entende que uma obra de arte é mais merecedora de um belo poema do que um texto de extensa crítica de arte, sempre prospensa a “explicar tudo” (nas palavras de Baudelaire). JMFJ dá-nos novas leituras às obras de arte criando uma nova dimensão, quase que criando um universo paralelo à crítica de arte formalista, tão útil e tão desinteressante ao mesmo tempo. Cria com “Mirleos” uma condensação de tempo extremamente interessante, uma espécie de “museu imaginário” que tem por base um lugar concreto (Coimbra). JMFJ parece ir além do seu já famoso livro “Museu das Janelas verdes”(2001), não estamos apenas perante obras de arte, mas perante “admiráveis ruínas” (“Criptopórtico”). Esta condensação de tempo é claramente visível no uso da linguagem, ora tão simples, fluída, contemporânea, ora tão arcaica (Português antigo ou latim). Mas engane-se quem pensar que a poesia de JMFJ se reduz à máxima “Ut Pictura Poesis”. Vejo a poesia de JMFJ como “Uma vida à minha frente”, talvez por pensar que no meu antigo caminho para a biblioteca da Ribeira Grande, já me tenha cruzado, sem saber, com João Miguel Fernando Jorge, entre o café Central e a rua do Conde Jácome Correia na Ribeira Grande. Uma paixão em crescendo.”

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Local da Fotografia: Café Candelabro, Porto

O livro do Vítor pode ser comprado aqui: Flâneur

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Fátima Silva encontra Tom Waits e Bukowski

“Gosto de ler na rua. E gosto de ler em cafés.
Gosto do Tom Waits. E gosto do Bukowski.
Redescobri o amor pelo Tom Waits ao prestar atenção à letra da “Christmas Card From a Hooker in Minneapolis”. É de uma escuridão e de uma marginalidade que me partem o coração.
Há uma tira do Charlie Brown que descreve na perfeição o que sinto:

“This song always depresses me
It brings back such sad memories… You know what I mean?
I’ve never heard another song that depresses me the way this one does…
Play it again, will you?”

Descobri a genialidade do Bukowski ao procurar saber mais sobre esta canção.
Descobri que foi a maior inspiração do Tom Waits nestas letras que, à imagem dos  seus poemas e prosa, enaltecem quem vive à margem.
Pulp tem detectives privados, prostitutas, gangsters, corridas de cavalos, apostas, whiskey, rixas em bares, livrarias marginais, poetas mortos, carros americanos. Hollywood dos anos 90.
E tem um humor muito próprio e muito negro que me faz rir às gargalhadas:
“De repente, estava perdido, comecei a olhar-lhe fixamente para as pernas. Sempre fui um gajo de pernas. Foi a primeira coisa que vi assim que nasci. Embora nessa altura estivesse a tentar sair. Desde então, tenho-me empenhado na direcção contrária e com uma sorte de cão.”

Ler o Pulp, a par de ouvir a “Christmas Card from a Hooker in Minneapolis”, faz-me viajar até uma América negra, da qual, na verdade, não sei nada. E, incrivelmente, faz-me sentir imensamente ligada à vida destas prostitutas e detectives privados com quem estou a construir uma relação de grande intimidade. Faz-me sentir as suas dores, as suas mágoas, os seus pensamentos mais negros. Os seus desesperos e as suas vontades.

Este foi o último livro do Bukowski. E para mim, o primeiro.
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Fátima Silva, designer, a ler na Praça Carlos Alberto, sítio de passagem e de paragem da sua flânerie pelo amado Porto.
O livro da Fátima pode ser comprado aqui: Flâneur