Vida e Morte de Uma Sombra
“Olhai, não tenho rosto, o que exibo é a cara do instante”
Edmond Jabés
Sombra de ninguém exilada nos meus pulmões,
sombra antiga dos pulmões
de que mapa ou desvairado país foges?
Dói a claridade, dói a crosta inicial desta sílaba,
mas dói sobretudo a vasta ausência,
inclinada sobre o meu nome.
Dói alguém no centro da idade,
dói a ignorância, a luz que falta, tudo o que treme,
o meu nome antes da pobreza,
doem as clareiras que os deuses abriram no meu ventre,
o salitre das crenças,
espécie de tristeza no canto dos relâmpagos,
ofegante respiração do Inverno.
Mas a sombra é um lugar corajoso
onde os dias terminam
atrás da luz ou atrás de mim
enquanto durmo por pudor ou tédio.
Tudo está intacto enquanto envelheço –
a humidade, a memória, rara água nas mãos –
tudo é difícil dentro da sombra
no silêncio tardio das orações, no frio,
na doçura negra.
Cinza, pólen, poeira: o que resta do mundo dos vivos.
José Oliveira, in Livro de Obra
Pintura: James Abbot McNeill Whistler, Arrangement in Grey and Black No.1 (1871), conhecido como Whistler’s Mother, Musée d’Orsay, Paris