Entre as muitas características curiosas que os seres humanos partilham está a de dedicarmos uma quantidade substancial de tempo e esforço a fazer e escutar sequências de sons sem qualquer significado convencional ou conteúdo representacional aparente. Chamamos “música” a essas sequências de som e distinguimo-las, de algum modo, daquelas que não o são. Alguma música é acompanhada de palavras cantadas mas como algo pode ser música sem conter palavras não pode ser a capacidade descritiva das palavras que explica a atenção que dedicamos, por exemplo, a uma sinfonia ou outra obra puramente instrumental. Tampouco é o fenómeno da “música pura” ou “música absoluta” uma peculiaridade ocidental.
O facto de fazermos esta distinção entre eventos sonoros, e a diversidade de comportamentos que adoptamos em virtude dessa distinção, colocam problemas filosóficos fascinantes. Eis alguns exemplos: o que faz um conjunto de sons ser música? A que realidade se refere este conceito de “música”? Mas também questões como a de saber de onde nos vem a crença de que a música é emocionalmente expressiva e o que poderia justificar essa ideia. Que relação existe entre a música e as emoções? Pode a música descrever, simbolizar ou representar as nossas “vidas emocionais”?
Que tipo de objecto, entidade ou coisa é uma obra musical? Quando assobiamos uma melodia cinco vezes, por exemplo, nenhuma dessas acções concretas pode ser identificada com a melodia, pois esta existiria mesmo que não a tivéssemos assobiado em qualquer daquelas ocasiões.
Diz-se por vezes que escutamos uma obra musical “com compreensão”. Alguém que compreende a música de uma dada tradição, contexto histórico ou autor compreende exactamente o quê? Se a música não é descritiva nem narrativa, o que há para compreender? Responder a esta pergunta supõe que tenhamos uma concepção robusta do que seja uma experiência musical e o que a distingue das outras experiências, que não o são.
Aqui listei quatro questões centrais da filosofia da música, as mesmas nas quais se centra a antologia que organizei e venho apresentar: os problemas da definição, ontologia, poder expressivo e compreensão da música. Trata-se de questões em aberto, acerca das quais muito se tem escrito sem que haja respostas definitivas ou canonicamente aceites. E isto é em parte o que as torna fascinantes, dado que o leitor que a elas chega pela primeira vez tem pela frente, não menos do que quem escreve sistematicamente sobre o assunto, o exercício desafiador mas estimulante, lúdico e prazeroso, de avaliar por si as forças e fraquezas das ideias que já se teve acerca do assunto, e imaginar modos de fazer avançar a discussão.
Vítor Guerreiro
Na próxima sexta-feira às 21h a Flâneur recebe o autor para uma conferência sobre Filosofia da Música. Estão convidados a participar.