Descrição
«[…] fui desafiado pelo José Tolentino Mendonça a participar numa peregrinação à Holanda – Nos Passos de Etty Hillesum – , organizada pela Capela do Rato em Lisboa. Propósito: não apenas conhecer a sua vida e os seus lugares, mas sobretudo entrar na sua espiritualidade e deixar-se transformar por ela.
Além de integrar o grupo como peregrino, tinha a missão de produzir um registo fotográfico que pudesse, mais tarde, com uma escolha de textos do seu Diário, vir a ser materializado num livro ou numa exposição.
[…]
Em Amesterdão hospedei-me perto da casa da Etty, pois queria fazer daí o meu ponto de partida.
No primeiro dia, noite adentro, percorri inúmeras vezes o caminho entre a sua casa e a casa de Julius Spier (o parteiro da sua alma). Esperava com isso encontrar inspiração, mas nada acontecia. Ao frio e debaixo de chuva, senti-me como um mendigo perdido pelas ruas de Amesterdão. Numa das voltas, sentei-me naquelas escadas do n.º 27 da Courbetstraat, onde Etty também se terá sentado a absorver os progressos que o seu coração ia fazendo. Mas nem aí me saía nada. Senti que era tudo demais para mim.
Voltei ao caminho e, a dada altura, percebi que a chuva intensa me conduzia o olhar para o chão, impedindo-me de ver o que se passava à minha volta.
Levantei a cabeça como quem deixa de olhar para dentro e comecei a fixar-me no interior das casas. O escuro da rua e o enquadramento das próprias janelas criavam a ilusão de estar no cinema a ver filmes de vidas reais: amigos à volta de uma mesa; casais aconchegados no sofá; crianças de pantufas aos saltos na cama. Cenas familiares de um quotidiano feliz e tranquilo.
Quando cheguei de novo a casa da Etty, também olhei para dentro, mas estava tudo apagado.
Então, senti que tinha diante de mim o seu legado.
[…]
Ela, como ninguém, ensinou-me a importância de exercitar a gratidão.
Ela, como ninguém, mostrou-me que é o facto de esperarmos um destino comum que nos faz cúmplices e irmãos na aventura do caminho.»
Filipe Condado