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Matsuo Bashô – Yosa Buson – Masaoka Shiki – Kobayashi Issa

Matsuo Bashô (Tóquio, 1644 – Osaka, 28 de Outubro de 1694)

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landscape with a solitary traveler – Yosa Buson

O deus está longe;              

empilham-se as folhas mortas

e tudo é deserto.

Começo de outono;

quer o mar, quer as campinas,

tudo é um só verde.

Entrega ao salgueiro

o tédio e todo o desejo

do teu coração.

Entre os pessegueiros,

florindo por todo o lado,

agora a cerejeira.

 

Esvai-se o som da noite;

sobre o perfume das flores —

um sino tocou.

 

Tudo o que me cerca

e encontra o meu olhar

é fresco e é novo.

 

No meio da planície

uma cotovia canta,

liberta de tudo.

 

Lua cheia, outono —

caminhei a noite inteira

ao redor do lago.

 

Sou só o que toma

o pequeno-almoço olhando —

esplendor da manhã.

 

Primeira manhã

de primavera; sinto-me

como qualquer outro.

 

A noite gelada;

o som do remo a cortar

a onda, — lágrimas.

 

Ao longo da estrada,

ninguém se vê caminhar;

cai a noite de outono.

 

o gosto solitário do orvalho seguido de o caminho estreito

 

Primavera

 

Abrindo de par em par

as portas do palácio:

A PRIMAVERA

 

Apesar da névoa

mesmo assim é belo

o Monte Fuji

 

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White Horse and Grooms – Yosa Buson

Não esqueças nunca

o gosto solitário

do orvalho

 

Brisa ligeira

A sombra da glicínia

estremece

 

Uma rã mergulha

no velho tanque…

O ruído da água

 

De que árvore em flor

não sei —

Mas que perfume

 

A cada sopro do vento

muda de folha

a borboleta no salgueiro

 

A uma papoila

deixa as asas a borboleta

como recordação

 

Flores de cerejeira no céu escuro

e entre elas a melancolia

quase a florir

 

Extingue-se o dia

mas não o canto

da cotovia

 

Lua cheia:

para repousar os olhos

uma nuvem de tempos a tempos

 

Flores queimadas pela geada

Os grãos caídos

semeiam a tristeza

 

Depressa se vai a primavera

Choram os pássaros e há lágrimas

nos olhos dos peixes

 

Verão

 

Preso na cascata

um instante:

o verão

 

Frescura:

os pés no muro

ao dormir a sesta

 

Com relutância

emerge e abelha

do coração da peónia

 

Visto à luz do sol

é apenas mais um insecto

o pirilampo

 

Narciso e biombo

um o outro ilumina

branco no branco

 

Silêncio:

as cigarras escutam

o canto entre as rochas

 

Sensação de vazio

Ao despedir-me colhi

uma espiga de trigo

 

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travelers on horseback on a mountain in spring – Yosa Buson

 

As cigarras cantam

sem saberem que é a morte

que as escuta

 

Ervas do estio

Eis o resta

do sonho dos guerreiros

 

No pôr do sol

entre as papoilas brancas

as faces curtidas dos pescadores

 

Outono

 

Outono:

velhos parecem até

os pássaros e as chuvas

 

Trevos roxos

ondulam sem deixarem cair

uma só gota de orvalho

 

Cai uma castanha…

Calam-se de súbito os insectos

entre as ervas

 

Crepúsculo:

as ervas parecem seguir

os rebanhos que recolhem

 

Vento de Outono —

até as pedras do Monte Assama

voam

 

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Yosa Buson

Ah este caminho

que já ninguém percorre

a não ser o crepúsculo

 

Admirável aquele

cuja vida é um contínuo

relâmpago

 

Na escuridão do mar

brancos

gritos de gaivotas

 

No outono nos separamos

como duas conchas

da amêijoa

 

Outono  —

empoleirado num ramo seco

um corvo

 

Inverno

 

Declínio  —

um dente acusa um grão de areia

nas algas secas

 

Intempérie  —

infiltra-se o vento

até na minha alma

 

Tão esguia a gata

Não da falta de cevada

mas do amor

 

Um vento glacial sopra

Os olhos dos gatos

pestanejam

 

As mãos no lume

… e na parede

a sombra do meu amigo

 

Primeira neve  —

basta um floco

para vergar a folha do junquilho

 

Kisagata  —

Seishi adormeceu à chuva

Húmidas mimosas

 

Se parados pelas nuvens

dois patos selvagens

Dizem-se adeus

 

Tendo adoecido em viagem

em sonhos vagueio agora

na planície deserta

 

O caminho estreito

 

Também esta cabana de colmo

se há-de transformar

em casa de bonecas

 

Que glória

as folhas verdes as folhas novas

sob a luz do sol

 

Nem o picanço

tocará esta ermida

suspensa entre as árvores de verão

 

Ficou plantado o arrozal

quando me despedi

do salgueiro

 

O berço da poesia

os cantos dos plantadores de arroz

no longínquo norte

 

Mãos que hoje plantam arroz

outrora ágeis desenhos

imprimiam como uma pedra

 

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Yosa Buson

Das cerejeiras em flor

ao pinheiro de dois troncos:

três meses

 

Criadoras de bichos da seda

as suas roupas

aroma de antiga inocência

 

Na frescura

me estendo

como no meu leito

 

Quietude:

as cigarras escutam

o canto das rochas

 

O cálido dia:

o rio Mogami

deita-o ao mar

 

Cabanas dos pescadores:

apanhando a frescura do entardecer

estendidos sobre as portas

 

O ninhos de «misagos»

sobre uma rocha no mar:

jurariam as ondas não lhes tocar

 

O Sétimo Mês

a noite do sexto dia

não me parece a de sempre

 

Penetro no aroma do arrozal

à minha direita

a cólera do mar

 

O sol arde

sem compaixão

Mas o vento é de Outono

 

Que nome delicado

O vento entre os pinheiros

os trevos os juncos

 

Se hei-de morrer no caminho

que seja

entre os campos de trevo

 

Hoje o orvalho

apagará o teu nome

do meu chapéu

 

Toda a noite

escutei

o vento de Outono na montanha

 

Yosa Buson  (1716, Osaka – 1783, Kyoto)

 

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cuckoo flying over new verdure – Yosa Buson

caídas as flores

da cerejeira, eis o templo —

através dos ramos.

 

As flores da colza —

com o sol  ocidente,

lua a oriente.

 

Com o vento de oeste,

juntam-se as folhas caídas

do lado de leste.

 

Tardinha de outono;

há alegria também

nesta solidão.

 

À brisa da tarde,

a água lambe e envolve

as pernas da garça.

 

Brilha um relâmpago!

O som das gotas de água caindo

por entre os bambus.

 

A noite afunda-se

e dome pelas aldeias;

o som da cascata.

 

Estendi a esteira

e sentei-me a contemplar

a ameixieira em flor.

 

A voz dos mosquitos —

sempre que cai uma flor

da madressilva.

 

Esplendor da tarde;

deve haver um amarelo

também a florir!

 

Azáleas florescem;

na aldeia perdida no monte

o arroz é branco.

 

Torna-se a raposa

um belo principezinho;

noite primavera.

 

Desoladamente,

o sol pôs-se nos rochedos

do seco paúl.

 

Vagarosos dias

passam. Que distantes fiam

as coisas passadas!

 

Lento vai o dia;

numa esquina de Kyôto

ouvem-se os ecos.

 

Masaoka Shiki (17 Setembro de 1867 – 19 de Setembro de 1902)

 

Na praia arenosa,

pegadas. É primavera —

longo vai o dia.

 

Passada a tormenta,

sol tardio brilha na árvore

onde a cigarra canta.

 

Nuvens ondeantes —

amontoadas ao sul,

barcos, brancas velas.

 

Perto das ruínas,

as aves a vaguear

por entre o hibisco.

 

Na curva da estrada,

já pode avistar-se o templo —

rústicos crisântemos.

 

Aqui e ali

um veado transparece

no meio dos arbustos.

 

Não há jardineiro —

o jardim em liberdade

e por aparar.

 

O sol da tardinha

trespassa a vegetação,

pousando na rede.

 

Na ilha do lago,

lá onde ninguém habita,

é densa a folhagem.

 

Kobayashi Issa ( 15 de Junho de 1763 – 5 de Janeiro de 1827)

 

masters
Matsuo Bashô; Yoza Buzon; Kobayashi Issa; Masaoka Shiki

Hasta mis pies

¿cuándo y cómo has llegado,

caracolillo? 

 

Por sí sola,

la cabeza se inclina,

Monte Kamiji.

 

Mi pueblo: todo

lo que me sale al paso

se vuelve zarza.

 

Cae bocarriba

la cigarra de otoño

y sigue cantando.

 

De no estar tú

demasiado enorme

sería el bosque.

 

Las flores han caído:

ahora nuestras mentes

están tranquilas.


 

 

 

 

 

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17 poemas haiku de Jorge Luis Borges

Logo depois da sua viagem ao Japão, o escritor argentino Jorge Luis Borges publicou no seu livro “La cifra” 17 poemas haiku que compôs em 1981.

O haiku é um poema tradicional japonês composto de dezassete sílabas e três versos.

 

Diecisiete haiku

Algo me han dicho
la tarde y la montaña.
Ya lo he perdido.

La vasta noche
no es ahora otra cosa
que una fragancia.

¿Es o no es
el sueño que olvidé
antes del alba?

Callan las cuerdas.
La música sabía
lo que yo siento.

Hoy no me alegran
los almendros del huerto.
Son tu recuerdo.

Oscuramente
libros, láminas, llaves
siguen mi suerte.

Desde aquel día
no he movido las piezas
en el tablero.

En el desierto
acontece la aurora.
Alguien lo sabe.

La ociosa espada
sueña con sus batallas.
Otro es mi sueño.

El hombre ha muerto.
La barba no lo sabe.
Crecen las uñas.

Esta es la mano
que alguna vez tocaba
tu cabellera.

Bajo el alero
el espejo no copia
más que la luna.

Bajo la luna
la sombra que se alarga
es una sola.

¿Es un imperio
esa luz que se apaga
o una luciérnaga?

La luna nueva.
Ella también la mira
desde otra puerta.

Lejos un trino.
El ruiseñor no sabe
que te consuela.

La vieja mano
sigue trazando versos
para el olvido.

 

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Os Velhos, Hélia Correia

Diz-se que há-de vir
uma era justa e boa
em que o valor da pessoa
se mantém quando envelhece.
Está no trabalho que fez.
Para conseguir uma coisa como esta
dava o sangue que me resta.
E era como se tivesse
nascido mais uma vez.

Deram-nos este banco de avenida
onde a sombra nos dói e a tarde gela
e daqui vemos nós passar a vida
Sem que a vida nos sinta perto dela.

Assim nos atiraram para fora
das coisas que ajudámos a fazer.
Ai, como o sol aquece pouco agora.
Ai, muito custa à noite adormecer.

Fomos pedreiros, varredores, ardinas
fizemos casas, cultivámos terras,
criámos gado, entrámos pelas minas,
demos os filhos para as vossas guerras.

Demos as filhas para vos servir,
cortámos lenha para a vossa fogueira.
E o tempo a ir-se, e a gente a pressentir
que vos demos sem querer a vida inteira.

E ainda é sangue o que nas veias corre.
Ainda é raiva o que nos dobra a mão.
Ainda ecoa um sonho que não morre
no nosso velho e atento coração.

Hélia Correia 

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Hernán Rivera Letelier, o mineiro-escritor

“desde ese día (quando em 1994 é premiado pelo Conselho Nacional do Livro e da Leitura do Chile) la vida me dio una vuelta de carnero. Me he convertido en el hombre más feliz del mundo. Hago lo que me gusta, vivo de eso y lo gozo. No he cambiado mi forma de vivir ni mis amigos, pero me siento más seguro de mí mismo, ya que no tengo que preocuparme de que no voy a tener pan para mis hijos mañana”.

Vivo há 64 anos Hernán Rivera Letelier, “mineiro-escritor por oposição a escritor-mineiro”, nasceu em Talca (Chile). Foi a ler e a escrever poesia enquanto trabalhava nas explorações de salitre do deserto costeiro de Atacama que o escritor chileno sentiu a necessidade de “devolver a memória da pampa a todos os que a quiseram esquecer”. Começa por escrever contos e poemas, mas é o romance o género literário que o torna um dos escritores mais importantes da literatura sul-americana. Influenciado pelo realismo mágico e pela experiência como mineiro, Letelier, segundo as suas palavras, sonha ser a mistura do mágico de Rulfo, do maravilhoso de García Márquez, do lúdico de Cortázar e da inteligência de Borges.

São cinco os livros traduzidos para português do autor Talquino: A Rainha Isabel Cantava Rancheras (Quetzal); Miragem de Amor com Banda de Música (Quetzal); Os Comboios Vão Para o Purgatório (Ulisseia); A Contadora de Filmes (Presença); A Arte da Ressurreição (Alfaguara); Comum a todos: a geografia única de Letelier e a sua prosa carregada de humor e surrealismo que encanta a Flâneur.

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A Rainha Isabel Cantava Rancheras é uma das obras literárias da narrativa chilena que mais sucesso obteve. Isabel é a prostituta mais famosa de todo o deserto, a mais desejada, a soberana absoluta das noites de Atacama. Retrato da vida dura e solitária de quem trabalha nas minas de salitre, dos bordéis e prostitutas. “Son mujeres que amo, porque si ser prostituta ya es fuerte, serlo en el desierto raya en lo heroico”.

Em Miragem de Amor com Banda de Música, Letelier faz desfilar a vida e os casos dos habitantes de uma povoação perdida em plena pampa. Uma bizarra história de amor entre Bello Sandalio, boémio trompetista da banda del Litro e Golondrina del Rosario, pianista e casta senhora de 29 anos. Sixto Pastor Alzamara é o barbeiro anarquista que toma a seu cargo a eliminação física do ditador Presidente da República.

Os Comboios Vão Para o Purgatório recria um mundo ora divertido e exótico, ora melancólico e romântico, do comboio que atravessa o deserto de Atacama durante a idade de ouro do salitre. São quatro dias e quatro noites de uma viagem que não eleva ao paraíso nem condena ao inferno, mas conduz ao espaço intermédio onde brota a vida e as grandes histórias.

A Contadora de Filmes narra a história de María Margarita, una menina com uma capacidade invulgar de contar histórias. É na simplicidade desta  “fazedora de ilusões” que a pobreza, a solidão e o peso do trabalho no inóspito deserto chileno, encontra o lugar ideal para sonhar. Hernán Rivera Letelier narra a história mágica dos cinemas das pampas, nos seus períodos de esplendor e decadência.

A Arte da Ressurreição, prémio alfaguara em 2010, é a história de Domingo Zárate Vega, o mesmo Cristo de Elfi de Os Comboios Vão Para o Purgatório, que graças a uma visão descobre ser a reencarnação de Jesus Cristo. Sabendo da existência de uma devota prostituta chamada Magalena parte a procurá-la, para juntos anunciarem a notícia eminente do fim do mundo. Personagens grotescas, sermões incendiários e milagres inacreditáveis compõem o maravilhoso tríptico narrado por Hernán Rivera Letelier.

Hernán Rivera Letelier é um dos preferidos na Flâneur.

Da terra árida das pampas chilenas extrai o mineiro as palavras, que, diluídas na sua paleta de memórias, desenham imagens únicas, de sonho, fantasia, desejo e miséria. São contornos de caminhos que se apagaram, outrora enclaves esquivos de vida pulsante, narrados como quem constrói uma imagem, um cenário onírico, habitado por personagens e memórias desfilantes, que à boa maneira de Fellini, parecem desaparecer, assim como se dobra uma tela pintada.

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Afonso Cruz, para onde vão os guarda-chuvas?

Em jeito de trocadilho com o título de um livro seu, Afonso Cruz é o exemplo de como os pássaros dos poemas e dos livros voam mais alto. Voam alto, avistando outros lugares, seres humanos e não humanos, indo ao encontro do mundo, que devia estar livre de gaiolas várias, de todas elas. Afonso Cruz viveu em mais de sessenta países e a sua literatura é fruto do que colheu em cada viagem. E à experiência junta-se a criatividade, o dom da efabulação e do recurso à metáfora, fazendo-nos acreditar que o pássaro que canta na sua cabeça se chama imaginação (Manuel António Pina).

Escritor, ilustrador, músico, fabricante de cerveja, filósofo… Afonso faz tudo o que gosta. E que grande exemplo é para todos esta bonita forma de vida. Como os grandes sábios, Afonso sabe que mais importante do que responder é saber perguntar e que mais importante do que acumular conhecimentos é compreender e relacionar conceitos, ideias, valores. Só desenvolvendo a empatia e a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro é que é possível viver em paz.

Estes valores e o homem que é parecem espelhar-se em cada livro, onde a invenção, a beleza da palavra e da narrativa convivem com a ética, a compreensão e o perdão. Uma das personagens da sua grande obra – “Para onde vão os guarda chuvas” (Alfaguara) -, o muçulmano Fazal Elahi, vê o filho ser assassinado por um soldado americano. À dor da perda junta-se o poder destruidor do ódio. Para não se deixar corromper por ele, Elahi decide adoptar uma criança americana. Somos humanos, demasiado humanos e se parece ser verdade que “o Mal existe em muitos mais lugares do que o Bem”, cabe-nos individualmente contribuir para o equilíbrio da balança.

E para onde vão os guarda-chuvas? Para onde vão as nossas brincadeiras de infância, para onde vão as nossas pessoas quando deixamos de as ver? Afonso diz não saber de onde vêm os guarda-chuvas, nem para onde vão. “Esses são os grandes mistérios da nossa existência, muito difíceis de compreender, independentemente de sermos ateus ou crentes. A morte continua a ser um mistério, mesmo que para algumas pessoas seja um nada absoluto. É muito difícil acreditar em coisas absolutas no Universo e esta é uma delas. Além de que há outra coisa estranha: como é que existe um tempo finito se existir eternidade? (…) O facto de sentirmos o tempo e de existirmos deveria querer dizer que o tempo não é eterno, não há eternidade. Mas nesse caso também seria muito complicado explicar isso, porque precisávamos de um princípio e de um fim. O mundo existe porquê? Porque não existe o Nada e existe o Universo?”, declarou em entrevista a Ana Sousa Dias para a revista Ler.

Afonso é um escritor da condição humana e também da contradição humana. E até parece que a primeira se faz da segunda. Escreveu o autor que “a vida descreve-se pela contradição do sobreiro: o jovem não tem paciência para esperar meio século para que a árvore cresça e seja adulta. Por isso, não a planta. Quando chega a velho e, finalmente, tem paciência para esperar, planta-a, mas já não tem tempo para a ver crescer” (Enciclopédia da Estória Univeral – Recolha de Alexandria [Alfaguara]).

A literatura é uma luz na escuridão, poetiza o mundo, em oposição à profanização, à liquidez. Faz-nos conhecer melhor o outro e faz-nos debruçar para dentro da grande paisagem que é a nossa essência. No Livro do Ano (Alfaguara), Afonso escreve que “para aquecer o corpo, o melhor é uma lareira. Mas, para aquecer a parte de dentro do corpo o melhor é ler”. Ler Afonso Cruz, a sua boa literatura com um coração dentro.

Fotografia: Vitorino Coragem – http://vitorinocoragem.com/

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Mahmud Darwich, o poeta da Palestina

Mahmud Darwich nasceu em 1942 em Birwa, na Galileia, a poucos quilómetros de São João d’ Acre. Em 1948, as tropas israelitas obrigam-no a partir com a família para o exílio, do qual regressa clandestinamente, um ano depois. Cinco vezes preso, entre 1961 e 1967, refugia-se, em 1970, no Cairo e, em 1972, em Beirute, que abandona, entretanto, em 1982, aquando da invasão do país pelas forças judaicas. Autor de uma extensa e complexa obra, atravessada ora por um tom revolucionário e patriótico, ora por um sopro épico e lírico, escreveu também diversas obras em prosa, onde estão reunidos os numerosos artigos publicados na imprensa, designadamente na revista literária al-Karmil, que fundou em Beirute e dirigiu a partir de Ramallah. Considerado um dos mais importantes poetas árabes contemporâneos, Darwish, autor da Declaração de Independência da Palestina, escrita em 1988, parte para o definitivo exílio em 2008, com 66 anos.

“A minha imagem pública permanece, entretanto, mais forte do que a minha inquietação. Eu sou o que se designa “o poeta da Palestina” e requer-se de mim que fixe o meu lugar na língua, que proteja a minha realidade do mito e domine uma e outra, para ser ao mesmo tempo parte da História e testemunha do que ela me fez sofrer. É por isso que o meu direito a um futuro implica revolta contra o presente e defesa da legitimidade da minha existência no passado. A minha poesia está assim transformada em prova de existência ou de nada. Eu era, quando comecei a escrever, habitado pela obsessão de dizer a minha perda, os meus sentidos, os limites impostos à minha existência, breve, o meu eu no seu meio e na sua geografia particulares. Não prestava verdadeiramente atenção ao facto de que o meu ser recortava um ser colectivo. Queria exprimir-me, sonhando apenas transformar-me a mim mesmo. Mas que podia eu contra o facto de a minha história individual, a do grande desenraizamento do meu lugar, se confundir com a dum povo? Os meus leitores encontraram assim, naturalmente, na minha voz pessoal a sua voz pessoal e colectiva. Mas, quando cantei na prisão as saudades do café e do pão de minha mãe, eu não aspirava a ultrapassar as fronteiras do meu espaço familiar. E, quando cantei o meu exílio, as misérias da existência e a minha sede de liberdade, não queria fazer “poesia da resistência”, como então afirmou a crítica árabe”.

“Quando penso nesses anos, revejo a formidável capacidade da poesia em se expandir, quando ela não procura nem solidão nem grande voga e nem uma nem outra são critérios válidos para julgar a sua beleza. Mas sei também, quando penso nos que denigre a “poesia política”, que, pior do que esta, é o excesso de desprezo pelo político, a surdez perante as questões colocadas pela realidade e pela História, e a recusa em particular implicitamente na empresa da esperança.”

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“A origem da poesia é sem dúvida uma só: a identidade do homem, desde o passado do seu exílio até ao seu presente exilado.”

“Que significa o facto de eu dizer que a minha poesia vem dum país no qual a relação entre o tempo e o lugar se rompeu, duma pátria em que as crianças se transformaram em fantasmas? É só uma maneira de dizer as dificuldades da modernidade árabe em marcha, da tribo cujas tendas se volatilizaram em direcção à cidade que ainda não nasceu. A obscuridade não é o objectivo da poesia. Ela nasce, porém, da tensão entre o movimento do poema e o pensamento que o poema põe em movimento, da tensão entre o seu estado de prosa e o seu estado de ritmo. E essa parte obscura, comparável às evocações das sombras, é uma das formas do combate entre a língua poética e a realidade que a poesia, na busca da sua essência, já não se contenta em descrever. Talvez essa parte obscura seja precisamente o espaço aberto diante do leitor que, liberto duma mensagem definitiva, dotado da capacidade de ler e interpretar, possa então dar ao poema uma segunda vida.”

“Raros são os poetas que nascem poeticamente duma só vez. Pela minha parte, nasci gradualmente e por contracções espaçadas e continuo a aprender a marcha difícil no longo caminho do poema que ainda não escrevi.”

Dezembro de 1999

Mahmud Darwich

As citações apresentadas foram extraídas do prefácio, da autoria de Mahmud Darwich, da edição portuguesa da Campo das Letras de “O Jardim Adormecido e outros poemas”, com selecção e tradução de Albano Martins.

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Dia da Poesia ou Manuel António Pina

Hoje é o dia dele. Da poesia, dos poetas, de todas as palavras, da energia poderosa da mais pura emoção humana. E estas palavras são as palavras da consciência, do amor pelas coisas, pelas pessoas humanas e pessoas não humanas. Agradecemos ao Pina a beleza, a bondade, a fidelidade. Agradecemos por tornar as nossas vidas mais bonitas, por nos criar esta comoção que nos relembra de quem somos e do que temos cá dentro. Precisamos de bons escritores, mas precisamos ainda mais de boas pessoas. Feliz dia da poesia!

As coisas

Há em todas as coisas uma mais-que-coisa
fitando-nos como se dissesse: “Sou eu”,
algo que já lá não está ou se perdeu
antes da coisa, e essa perda é que é a coisa.

Em certas tardes altas, absolutas,
quando o mundo por fim nos recebe
como se também nós fôssemos mundo,
a nossa própria ausência é uma coisa.

Então acorda a casa e os livros imaginam-nos
do tamanho da sua solidão.
Também nós tivemos um nome
mas, se alguma vez o ouvimos, não o reconhecemos.

Manuel António Pina, Como Se Desenha Uma Casa, Assírio & Alvim

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Romain Gary e os elefantes

É o escritor e o homem que nos escreve. Estas são as palavras (retiradas da Nota do Autor) que abrem o livro “As Raízes do Céu”, de Romain Gary. Admirávamos a sua escrita, agora admiramos também a sua humanidade, a sua ética, a sua empatia por todos os seres, a sua voz na defesa do outro, possivelmente diferente no pensar e no viver, mas tão parecido no sentir. “Àqueles que se espantarem com a minha preocupação, que talvez julguem requintada, ou excessiva, pelas belezas da terra, num momento em que devemos defender a obra humana, ameaçada pelos seus mais antigos demónios, responderei que nos julgo suficientemente generosos para não nos importarmos de pensar nos elefantes, quaisquer que sejam as dificuldades da nossa luta e as cruéis exigências da marcha em frente. (…) Creio na liberdade individual, na tolerância e nos direitos do homem. Pode ser que se trate também de elefantes fora de moda e anacrónicos, sobreviventes embaraçosos de uma época geológica desaparecida: a do humanismo. Não o penso, porque acredito no progresso e porque o verdadeiro progresso traz consigo as condições indispensáveis para a sobrevivência daqueles valores. É muito possível que me engane e que a minha confiança não passe de um ardil do meu próprio instinto de conservação. Nesse caso, espero desaparecer com eles. Mas não sem os ter defendido até ao fim das fúrias totalitárias, nacionalistas, racistas, místicas e ideomaníacas, e nenhuma impostura, nenhuma teoria, nenhuma dialéctica, nenhuma camuflagem ideológica me fará esquecer a sua soberana simplicidade.”