Descrição
Ao propor penetrantes leituras de Platão a Aristóteles, de Cabet e Jacotot até Arendt e Lyotard, ao considerar os protestos estudantis da actualidade e os slogans sintomáticos do fim da política, Jacques Rancière afirma que o específico da política democrática é a irrupção do démos e do ápeiron – o ilimitado – que o anima, desafiando o status quo. Os operários têxteis de Paris que entram em greve em 1833, a emancipação do marceneiro Gauny, a afirmação de Blanqui como proletário, os estudantes que descem à rua em França, em 1986, para exigir a revogação de novas leis do sistema universitário, são exemplos do que constitui a perturbação dessa degenerescência da democracia, que se faz passar pela sua realização, e que se dá pelo nome de consenso, que não é mais do que a manutenção policial da ordem. Por seu lado, Courbet, Flaubert e Proust desfazem o habitual e as especificidades identitárias, ao entregarem-se ao «projeto louco de realizar uma mimesis integral das vidas mudas, das vidas radicalmente indiferentes». Convocam a linguagem artística e os seus poderes desterritorializantes de que Kafka já falava: «Escrever não reside em si mesmo». É por aqui que Rancière relaciona democracia (política) com literatura (artes), no que constitui um traço saliente da sua proposta sobre a estética e a política: «Não será o próprio-impróprio da literatura, o que a liga à democracia, é o não parar de inscrever, na sua quase-existência constantemente re-demonstrada, a experiência do quase-outro e do dissenso, a experiência da multiplicação vertiginosa do banal, do banal que fala e que se esquiva, do banal extra-ordinário? Poderíamos dizê-lo de outro modo: a literatura [e as artes] é [são] uma experiência do inabitar».