Em jeito de trocadilho com o título de um livro seu, Afonso Cruz é o exemplo de como os pássaros dos poemas e dos livros voam mais alto. Voam alto, avistando outros lugares, seres humanos e não humanos, indo ao encontro do mundo, que devia estar livre de gaiolas várias, de todas elas. Afonso Cruz viveu em mais de sessenta países e a sua literatura é fruto do que colheu em cada viagem. E à experiência junta-se a criatividade, o dom da efabulação e do recurso à metáfora, fazendo-nos acreditar que o pássaro que canta na sua cabeça se chama imaginação (Manuel António Pina).
Escritor, ilustrador, músico, fabricante de cerveja, filósofo… Afonso faz tudo o que gosta. E que grande exemplo é para todos esta bonita forma de vida. Como os grandes sábios, Afonso sabe que mais importante do que responder é saber perguntar e que mais importante do que acumular conhecimentos é compreender e relacionar conceitos, ideias, valores. Só desenvolvendo a empatia e a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro é que é possível viver em paz.
Estes valores e o homem que é parecem espelhar-se em cada livro, onde a invenção, a beleza da palavra e da narrativa convivem com a ética, a compreensão e o perdão. Uma das personagens da sua grande obra – “Para onde vão os guarda chuvas” (Alfaguara) -, o muçulmano Fazal Elahi, vê o filho ser assassinado por um soldado americano. À dor da perda junta-se o poder destruidor do ódio. Para não se deixar corromper por ele, Elahi decide adoptar uma criança americana. Somos humanos, demasiado humanos e se parece ser verdade que “o Mal existe em muitos mais lugares do que o Bem”, cabe-nos individualmente contribuir para o equilíbrio da balança.
E para onde vão os guarda-chuvas? Para onde vão as nossas brincadeiras de infância, para onde vão as nossas pessoas quando deixamos de as ver? Afonso diz não saber de onde vêm os guarda-chuvas, nem para onde vão. “Esses são os grandes mistérios da nossa existência, muito difíceis de compreender, independentemente de sermos ateus ou crentes. A morte continua a ser um mistério, mesmo que para algumas pessoas seja um nada absoluto. É muito difícil acreditar em coisas absolutas no Universo e esta é uma delas. Além de que há outra coisa estranha: como é que existe um tempo finito se existir eternidade? (…) O facto de sentirmos o tempo e de existirmos deveria querer dizer que o tempo não é eterno, não há eternidade. Mas nesse caso também seria muito complicado explicar isso, porque precisávamos de um princípio e de um fim. O mundo existe porquê? Porque não existe o Nada e existe o Universo?”, declarou em entrevista a Ana Sousa Dias para a revista Ler.
Afonso é um escritor da condição humana e também da contradição humana. E até parece que a primeira se faz da segunda. Escreveu o autor que “a vida descreve-se pela contradição do sobreiro: o jovem não tem paciência para esperar meio século para que a árvore cresça e seja adulta. Por isso, não a planta. Quando chega a velho e, finalmente, tem paciência para esperar, planta-a, mas já não tem tempo para a ver crescer” (Enciclopédia da Estória Univeral – Recolha de Alexandria [Alfaguara]).
A literatura é uma luz na escuridão, poetiza o mundo, em oposição à profanização, à liquidez. Faz-nos conhecer melhor o outro e faz-nos debruçar para dentro da grande paisagem que é a nossa essência. No Livro do Ano (Alfaguara), Afonso escreve que “para aquecer o corpo, o melhor é uma lareira. Mas, para aquecer a parte de dentro do corpo o melhor é ler”. Ler Afonso Cruz, a sua boa literatura com um coração dentro.
Fotografia: Vitorino Coragem – http://vitorinocoragem.com/