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A gravidade planta-se no rosto, no ventre.

A gravidade planta-se
no rosto, no ventre.
É o abandono de Deus.
Por isso na montra
os manequins são livres,
fazem uma ideia oca
inversa
vertiginosa de Deus.
Choro-lhes no ombro até que me comova
a forma humana, as coisas a que pede servidão.
Choro na infância o terror frio
da lua, o leite fervido,
a velha náusea que se forma à superfície.
Tudo me lembra a rósea ferida,
a amálgama dos ossos
cujo brilho a noite, a queda, um som
quebrado expõem.
Tudo
lembra o deslace,
Deus e carne
em feia luta.
Que o corpo, em seu afinco,
é um degrau difícil de descer.
Andreia C. Faria, in Alegria Para o Fim do Mundo
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O Amante de Lady Chatterley

(…) Acredito num mistério superior que não permite que os corações se apaguem. Se está na Escócia e eu nos Midlands e não a posso abraçar e agarrar, resta-me no entanto algo de si. A minha alma palpita docemente consigo na pequena chama de Pentecostes e é como a paz que se sente depois de fazer amor. Há uma chama que nasce quando se faz amor. Até as flores nascem do amor entre o sol e a terra, E tudo isto é um problema delicado que exige paciência e uma longa espera.
E assim gosto da minha castidade neste momento, por que é como a paz que sobrevém ao amor. Gosto de levar uma vida casta, como as goteiras gostam da água da chuva. Gosto da castidade, que é o momento de paz no nosso amor e que é uma chama branca, muito branca. E quando a primavera chegar, quando passarmos a viver juntos, então poderemos, ao fazer amor, tornar a pequena chama brilhante, amarela e brilhante. Agora é impossível. Agora temos de ser castos, e é bom ser casto, é como um rio de água fria na alma. Gosto da castidade que corre agora entre nós. É água fresca da chuva.
Como é possível desejar permanentemente as cansativas aventuras? Ser apenas Don Juan é terrível, não chega para conseguir extrair paz do amor, quando a pseudochama brilha, incapaz de ser casto de vez em quando, como quem se senta na margem de um rio. (…)

D. H. Lawrence, in O Amante de Lady Chatterley
Edição Relógio D’Água

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Pintura: Woman Drying Her Hair. Joseph DeCamp

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Cláudia Lucas Chéu

Há autores que descobri na adolescência, na biblioteca do Seixal, e aos quais volto com alguma regularidade — Kafka, Álvaro de Campos, Shakespeare, Gonçalo M. Tavares, Melville e J.D. Salinger. Os livros destes autores foram, sem dúvida, o gatilho para começar a escrever. A Metamorfose e os Contos de Kafka, Bartleby, O Escrivão de Melville, À Espera no Centeio de Salinger, Aprender a Rezar na Era da Técnica de Gonçalo M. Tavares, entre outros destes autores, contribuíram de uma forma inolvidável para a minha formação. Recentemente, e por frequentar o mestrado em Filosofia, ando a ler A Gaia Ciência de Nietzsche e Temor e Tremor de Søren Kierkegaard que, para mim, são escritos de ficção científica — operam mudanças significativas de raciocínio, é como descobrir que existem outras dimensões. No último ano, também descobri os contos de Salinger (Franny e Zooey e Nove Histórias) que identifico como um mistério paradoxal de atracção — textos simultaneamente simples e sofisticados. Reconheço-lhes mestria, são autênticas peças de relojoaria.

Beber pela Garrafa

Aqueles que vão morrer

Bartleby

A Tempestade

Temor e Tremor

A Gaia Ciência

Aprender a Rezar na Era da Técnica

Nove Histórias

Contos Escolhidos

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Afonso Reis Cabral

Primeiro, acabei O Poço e a Estrada, a biografia de Agustina Bessa-Luís por Isabel Rio Novo. Achei interessante descobrir melhor uma escritora de quem andava mais ou menos distraído, tendo lido apenas alguns livros. De seguida, um inédito de uma amiga, que é um livro intenso, com a escrita direita ao osso da história. Creio que encontrará quem o publique em breve. Depois de anos de vai-não-vai, li por fim Rumor Branco, de Almeida Faria. É de facto muitíssimo bom, embora aquele género de literatura não me cative especialmente – entretanto, já tenho na calha A Paixão. Por último, li o romance O Falcão Peregrino, de Glenway Wescott. Passado numa tarde apenas, as observações dos gestos mais simples e insignificantes tomam uma dimensão universal, em particular no que diz respeito ao amor no contexto do casamento. Lê-se numa tarde e fica muito tempo.

Pão de Açúcar

O Meu Irmão

O Poço e a Estrada

O Falcão Peregrino

Rumor Branco

 

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Manuel Alberto Vieira

Atraiçoaria a verdade se aqui colocasse uma lista definitiva e fiável do que ando a ler, pois sou refém de uma indisciplina que, por defeito, não consigo contrariar. Porém, na arrumação possível do caos, sublinho o que mais me tem estimulado. À cabeça, um daqueles adiamentos imperdoáveis: iniciei finalmente a leitura da Odisseia, de Homero (na tradução de Frederico Lourenço). Tendemos a esquecer aqueles que nos trouxeram até aqui, mas por vezes convém travar a marcha e impor o regresso ao princípio, sob pena de perdermos a humildade necessária ao entendimento do tempo. Para as leituras debicadas que precedem o sono, acumulo neste momento o Ensaios sobre Fotografia, de Susan Sontag, o Juro Não Dizer Nunca a Verdade, de Javier Marías, e o omnipresente Cartas a Lucílio, de Séneca (esse livro-casa). A que acrescentaria as leituras mais obedientes de Os Sete Loucos, do singularíssimo Roberto Arlt, e A Casa das Belas Adormecidas, de Yasunari Kawabata. Mas talvez o autor que mais me tem impressionado seja o Daniel Jonas. Um acaso improvável, dada a distância que nos separa na geografia literária, todavia justamente sublinhado. É um caso raro de génio. Acabo de lhe revisitar vários poemas e, a cada livro, o regresso dessa estranha certeza de interrupção de uma qualquer ordem fundamental. A sua música desafia a noção canónica; creio que a recusa, na verdade — segue paralelamente a ela, na margem. É uma espécie de voz futura que nos chega do passado (ou de voz passada que nos chega do futuro) e que, por conseguinte, nunca se deixa apanhar (e muito menos fixar). Transfigura o moderno, colocando-o num certo sentido mais à frente — num tempo a que vagamente aspiramos — através da forma que veste o ritmo e domestica a tentação de fazer tese. Ousar o paradoxo de colocar à cintura deste admirável mundo novo um espartilho à medida da mais austera tradição sem nunca perder o fôlego parece-me uma proeza assinalável.

(Fotografia de Manuel Alberto Vieira – Carlos Lobo)

 

Teatro Vertical

Na Presença da Ausência

Odisseia de Homero

Juro Não Dizer Nunca a Verdade

Os Sete Loucos

A Casa das Belas Adormecidas

Canícula

Oblívio

Bisonte


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Criança e Flor

Feliz o recém-nascido,
(De acordo com as melhores conjecturas queria referir
Como evolui no mundo a nossa Existência), abençoada a criança,
Acariciada nos braços da Mãe, adormecendo
Embalada no seio materno; ela, com a sua alma,
Bebe as emoções no olhar materno!
Para ela, na Presença única e amada, existe
Uma virtude que irradia e exalta
Os objectos através da mais vasta comunhão dos sentidos.
Não é uma exilada, perplexa e abatida;
Ao longo das suas veias de criança
Misturam-se a gravitação e os laços filiais
Da Natureza que a ligam ao Universo.
Aponta para uma flor ainda com a mão
Demasiado hesitante para a colher, mas para ela
Já é o amor, que, vindo da sua mais pura fonte terrestre,
Tornou bela esta flor; já as sombras
Da piedade que chegam de uma ternura interior
Ficam à sua volta sobre o que traz consigo
As cicatrizes informes da violência e do mal.
Forçosamente tal ser vivo existe,
Por muito frágil que seja, ao mesmo temo frágil e débil,
Ele é um ser deste universo cheio de vida:
O sentimento transmitiu-lhe uma força
Que, através das faculdades crescentes dos sentidos,
Como instrumentos do único e supremo Espírito,
Cria, sendo que cria e quem recebe,
Num trabalho que é a aliança com as obras
Que contempla, Tal é, verdadeiramente, o inicial
Espírito poético na nossa vida humana,
Que, devido à uniforme disciplina dos anos,
Em muitos se torna menor ou é destruído; em alguns,
Mesmo que se altere, por se desenvolver ou não,
Ele domina até à morte.

William Wordsworth, in O Prelúdio

O Prelúdio

Os livros do Arnaldo

Pintura de Albert Anker

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Alexandre Andrade

Estou a ler um ensaio de Gérard Genette, intitulado Seuils, que se debruça sobre o paratexto, ou seja, os elementos do livro publicado que circundam, complementam e enquadram o texto propriamente dito: título, prefácio, notas de rodapé, índice, bibliografia, etc. Gosto do estilo de Genette, que consegue equilibrar humor, erudição e vontade genuína de partilhar conhecimento e pontos de vista, embora ocasionalmente se torne demasiado palavroso e coloquial para o meu gosto. Em ficção, decidi por fim lançar-me à aventura de encetar o primeiro volume de O Homem Sem Qualidades, de Musil. É uma altura da minha vida tão boa como qualquer outra para isso. Ainda é cedo para poder transmitir qualquer impressão. Para já, pouco mais se sabe do que isto: o homem sem qualidades chama-se Ulrich, mora numa vivenda e tem uma amante. Também tenho andado a ler, muito espaçadamente, a antologia completa dos contos de V.S. Pritchett, um calhamaço que exige uma certa preparação física para ser manuseado. Nos que já li, sobressai uma capacidade rara de retratar traços de carácter por meio de pequenos enredos aparentemente inócuos. Em poesia, estou a ler Azul e Vermelho, de Adriana Crespo, uma autora que tem vindo a construir uma obra singularíssima de beleza e inteligência, espalhada por alguns (demasiado raros) livros, inéditos e uma constelação de blogs. Seria bom que o reconhecimento mais amplo desta autora, que é inevitável, se situe num futuro muito próximo e não numa qualquer posteridade distante que lance sobre nós um olhar condoído por não termos sabido apreciar devidamente a excelência.

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Rosa Alice Branco

É quase estranho estar a reler Homens imprudentemente poéticos e continuar a descobrir que cada página é uma obra-prima. E pergunto-me com que ingredientes imperfeitos Valter Hugo Mãe escreve um livro perfeito, página a página.
Distorce, retorce o cânone, seja este qual seja, dá-lhe tantas voltas tresloucadas, vira-o do avesso, e o resultado de todas estas reviravoltas imprudentes é a lição da candura como ímpeto transformador, como a única força de linguagem criadora de cosmos.

O escritor elege, para proteger na escrita, as criaturas desabrigadas e apaziguadoras, as mulheres – como a cega menina Matsu e a criada Sra. Kame – perante a crueldade dos que pensam comandar o destino. Mas neste livro deparamo-nos com o modo como os ódios criam fantasmas carnais conducentes à destruição dos que se deixam tomar pela força alucinante e descontrolada dos mesmos.

Todos os signos, rituais, modos fenoménicos que acontecem no livro só podem remeter para o Japão. Em O Império dos signos é notório o fascínio de Roland Barthes por esse Japão que ele diz ter inventado, e inventou, na medida em que perspectivou, em toda a fruição, a materialidade e sensualidade da gestualidade japonesa.

Também Valter Hugo Mãe se dá aos lugares onde pernoita para escrever, respeita-os e por isso os transfigura, rasgando a escrita em plenitude, desde o léxico à sintaxe, compreendendo que a gestualidade é um ensinamento de linguagem e a linguagem ensina o modo de estar no mundo.

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O amor não é uma ideia

(…) O amor não é uma ideia. É uma emoção que pode arrefecer ou aquecer. Vem e vai. É um sentimento que adquire forma e dimensão e tem cinco ou mais sentidos. Por vezes, aparece-nos na forma de um anjo com asas delicadas capazes de nos arrancar da Terra. Por vezes, investe contra nós como um touro, deixa-nos estendidos no chão e vai-se embora. Outras vezes, é uma tempestade que só identificamos depois da devastação que provocou. Outras vezes ainda, cai sobre nós como o orvalho da noite, quando uma mão mágica ordenha uma nuvem errante.
Mas todas estas formas se fundem – se tornam visíveis, perceptíveis e tangíveis – numa mulher, não numa ideia. Amamos a tentação da forma, e a imaginação dedica-se a indagar o que de misterioso e estranho guarda. As almas conhecem-se e desenvolvem proximidade através da forma, que brilha graças à sua essência. E é possível que divirjam na interpretação do que o corpo diz ao corpo e partam em busca de outra transparência, dissolvendo-se em corpos repletos de água, harmonia e música. O amor é caprichoso, mutável, resistente à identidade. É o acometimento que confunde paixão e iluminação. É o que não conheces e sabes que não conheces. É a consumação do significado no não-significado, em virtude da sua excessiva tendência para a gratuitidade e para o esbanjamento. É a antítese da repetição e da pretensão de emendar o ar com cor. Caso contrário, pode converter-se num matrimónio em que a correcção mútua substitui a improvisação da poesia indispensável ao amor. A prosa das tarefas domésticas não serve para conservar duas pêras frescas no prato de mármore, nem para incitar o desconhecido a travar o conhecido. Tem de haver mistério. Tem de haver mistério para que o amor continue a ser surpresa e dádiva. Portanto, não abras o armário que guarda os segredos da natureza dela. (…)

Mahmoud Darwish, in Na Presença da Ausência

Na Presença da Ausência

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Fábula de um Arquitecto

Fábula de um Arquitecto

A arquitectura como construir portas de abrir,
de abrir, ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e teto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.

2.

Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.

João Cabral de Melo Neto, in A Educação Pela Pedra,
Livros Cotovia

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Pintura: Interior Strandgade | Vilhelm Hammershoi | oil painting